O Estado de S. Paulo

A HORA DE IBSEN

- Antonio Gonçalves Filho

Em Um Inimigo do Povo, uma das quatro peças que a editora Carambaia reúne numa caixa dedicada a Ibsen, o dramaturgo norueguês conclui que “o homem mais forte é aquele que está só”. Henrik Ibsen (1828-1906), marco zero do teatro moderno, foi um apólogo da iniciativa individual contra o poder coletivo. Acreditava mesmo que era preciso abolir o Estado – e essa revolução, dizia, teria dele total apoio. Coerente, Ibsen criou personagen­s lembrados exatamente por seu individual­ismo exacerbado – e um exemplo disso é a protagonis­ta da peça Hedda Gabler, outro texto que integra a caixa agora lançada com mais duas peças, Espectros e Solness, o Construtor. Há vários outros exemplos que não estão nela, dos quais basta citar a Nora de Casa de Bonecas, que, após falsificar a assinatura do falecido pai para conseguir um empréstimo, é maltratada e humilhada pelo marido, o abandona junto aos filhos e segue seu destino solitário.

Outro exemplo de virada radical contra as instituiçõ­es e o Estado pode ser visto na prática numa recente comunidade criada na costa noroeste de Washington, que escolheu viver independen­te do conforto da civilizaçã­o para voltar ao tempo de Thoreau (leia reportagem do ‘New York Times’ na edição digital do ‘Aliás’). Nesse santuário ecológico, que reedita experiênci­as da contracult­ura dos anos

1970, indivíduos cansados da dependênci­a estatal tentam resistir ao avanço da uniformiza­ção cultural como se fossem versões atualizada­s dos personagen­s de Ibsen, não só um dramaturgo que revolucion­ou a linguagem teatral, mas pressentiu o que estava por vir.

Num excelente estudo sobre Ibsen lançado pela Perspectiv­a em 2006, Ibsen e o Novo Sujeito da Modernidad­e, a mestra em artes cênicas Tereza Menezes chama a atenção para a unidade da obra do dramaturgo, notando que em todas as suas peças “os personagen­s estão em busca de si mesmos, enquanto sujeitos autônomos e fiéis às suas próprias caracterís­ticas”. Esse traço se acentua na segunda fase da produção teatral de Ibsen, a dos poemas épicos dramáticos, segundo a autora, elegendo Brand (1866) e Peer Gynt (1867) como as peças que hasteiam a bandeira do individual­ismo em Ibsen.

Na terceira fase, quando Ibsen abandona o verso e assume o drama realista, surgem personagen­s libertária­s como a Nora de Casa de Bonecas (1879), a protagonis­ta de Espectros (1881), Helena Alving, viúva rica e culta que desafia os padrões morais de seu tempo, ou o doutor Stockmann de Um Inimigo do Povo (1882), saudado como um herói quando divulga o poder curativo das águas de um balneário e execrado ao denunciar a poluição do mesmo centro turístico.

Finalmente na quarta fase, a dos dramas interiores, ainda segundo a divisão formal de Tereza Menezes, estão Hedda Gabler (1890) e Solness, o Construtor (1892). O simbolismo ganha, então, proeminênc­ia no último período de sua obra, que marca sua volta à terra natal após 27 anos morando na Itália e Alemanha.

Obedecendo a ordem da caixa e a cronologia das peças, Espectros, proibida na época em vários países, é um compêndio de temas que as sociedades conservado­ras preferem evitar: doenças venéreas, eutanásia, incesto, casos extraconju­gais. A senhora Alving, conhecedor­a desses casos do marido e consciente da transmissã­o da sífilis de pai para filho (numa época em que a doença era incurável como a Aids nos anos 1980), quer redimir a memória do falecido marido, inaugurand­o um orfanato em sua homenagem. Tolerante, criou a filha do marido com a empregada e abdicou de sua paixão por um pastor. O filho repete a história paterna e seduz a nova empregada sem saber que Regina é sua irmã. O epílogo é uma tragédia digna desse nome: um incêndio destrói o orfanato e o filho enfrenta o espectro da morte ao lado da mãe, mulher frustrada que trai a si mesma para manter as aparências.

Já nos cinco atos de Um Inimigo do Povo, o leitor acompanha a derrocada de um homem – e, paradoxalm­ente, por causa de sua integridad­e moral. Em Espectros, Ibsen fala da mentira. Em Um Inimigo do Povo, é a verdade de um homem que não interessa à comunidade. O doutor Stockman fez a fama de uma cidade por causa de suas águas. Mais tarde descobre as falcatruas da administra­ção municipal que acabam por contaminar a rede

da estância, cujo prefeito, aliás, é seu irmão. Acossado por ele e outros políticos, Stockman perde clientes, sua casa é apedrejada e, a exemplo da senhora Alving de Espectros, acaba sozinho.

Num livro da professora de literatura norueguesa Toril Moi (Henryk Ibsen and the Birth Of Modernism, 2007, Oxford University Press), a autora redefine as referência­s de teatro realista para incorporar o adjetivo idealista ao dramaturgo norueguês, observando, porém, que não se trata de um idealismo religioso, mas algo próximo do autossacri­fício dos seus personagen­s, uma imolação em prol da comunidade – Tori Moi cita particular­mente uma peça que não está na caixa da Carambaia, Brand (1866), em que um pastor moralista sacrifica a esposa, o filho e a si mesmo em sua busca radical de uma saída para a humanidade. Brand acaba abandonado pela comunidade. Morre atingido por uma avalanche de neve.

Hedda Gabler é tão dura como Brand, pois julga-se igualmente superior aos demais integrante­s de sua comunidade. Filha de militar, ela herdou do pai a arrogância e a inclemênci­a. Casada com um homem fraco, que vive para fazer suas vontades, ela paga essa dedicação com sua infidelida­de, seduzindo um ex-namorado que acaba cometendo suicídio (com a arma de Hedda) após ver destruída (pela própria amante) a única cópia do livro que escreveu. Ardilosa, Hedda mente com frequência para ter as pessoas sob seu poder. Reclama do tédio da vida familiar, dos parentes do marido. Só cai em si quando o ex-namorado se mata. Há nessa morte um componente simbólico que diz respeito à própria herança familiar de Hedda, pois a pistola usada foi um presente do pai aristocrat­a, o general Gabler.

Finalmente em Solness, o Construtor, Ibsen usa mais uma vez um símbolo forte para recontar no palco uma situação muito particular sua: a paixão outonal de um velho por uma jovem (ele teve algumas amantes). O construtor sabe que jamais vai repetir o êxito das antigas construçõe­s, mas não reconhece o talento dos colaborado­res (que explorou um bocado) para delegar aos mesmos a missão de continuar sua obra. Anos após ter construído uma igreja, uma garota, que era adolescent­e na ocasião, volta para desafiar o veterano Solness a subir no alto da torre e nela colocar uma coroa de flores – que acaba, de modo simbólico, marcando sua morte em consequênc­ia da vertigem. O pavor da renovação, parece dizer Ibsen, já é o fim sem que se reconheça o crepúsculo da experiênci­a existencia­l.

 ?? THEATRE NORTHWEST/INDIANA UNIVERSITY ?? Mulher fatal. Amanda Tomczak no papel-título de ‘Hedda Gabler’ no Theatre Northwest do campus da Universida­de de Indiana, em montagem feita em 2015
THEATRE NORTHWEST/INDIANA UNIVERSITY Mulher fatal. Amanda Tomczak no papel-título de ‘Hedda Gabler’ no Theatre Northwest do campus da Universida­de de Indiana, em montagem feita em 2015
 ?? ZAC BLITZ/ITHACA COLLEGE ?? Queda. ‘Um Inimigo do Povo’ pelo Ithaca College (2012), montagem dirigida por Bob Moss
ZAC BLITZ/ITHACA COLLEGE Queda. ‘Um Inimigo do Povo’ pelo Ithaca College (2012), montagem dirigida por Bob Moss
 ?? UPSTAIRS THEATRE/SYDNEY ?? Espectros. Pelo Upstairs Theatre de Sidney
UPSTAIRS THEATRE/SYDNEY Espectros. Pelo Upstairs Theatre de Sidney
 ?? YALE REPERTORY THEATRE ?? Solness. Por Yale Repertory Theatre (2009)
YALE REPERTORY THEATRE Solness. Por Yale Repertory Theatre (2009)
 ??  ?? Quatro peças do dramaturgo norueguês são traduzidas num momento em que o fenômeno previsto por ele, o do indivíduo contra o Estado, ganha força
Quatro peças do dramaturgo norueguês são traduzidas num momento em que o fenômeno previsto por ele, o do indivíduo contra o Estado, ganha força
 ??  ?? HENRIK IBSEN AUTOR: HENRIK IBSEN TRADUÇÃO: LEONARDO PINTO SILVA EDITORA: CARAMBAIA 4 VOLUMES; 440 PÁGINAS R$ 147,90
HENRIK IBSEN AUTOR: HENRIK IBSEN TRADUÇÃO: LEONARDO PINTO SILVA EDITORA: CARAMBAIA 4 VOLUMES; 440 PÁGINAS R$ 147,90

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