O Estado de S. Paulo

FAROESTE SHAKESPERI­ANO NA SERRA GAÚCHA

- Mateus Baldi ✽ ✽ É ESCRITOR E ROTEIRISTA. FUNDADOR DA PLATAFORMA LITERÁRIA 'RESENHA DE BOLSO’

PROBLEMAS DE CASAL NÃO SÃO DOENÇA, SÃO INCOMPETÊN­CIA PARA LIDAR COM A COISA MAIS BÁSICA DA VIDA (TRECHO RETIRADO DO ROMANCE ‘ROUPAS SUJAS’) Leonardo Brasiliens­e ESCRITOR

Você, leitor, está diante de uma família. Não uma família qualquer, é claro. Uma família gaúcha, de uma colônia no interior do estado, com seus sete filhos e anos e anos de ressentime­ntos. Você, leitor, está diante de um romance cuja força se concentra em uma primeira voz poderosa – Antônio – que observa o mundo ao redor com doses cavalares de estranhame­nto. Você está diante de um romance cujas roupas sujas do título estão pura e simplesmen­te encardidas. Mas não se desespere. A lama está a caminho.

Escrito com precisão cirúrgica pelo vencedor do Jabuti Leonardo Brasiliens­e, Roupas Sujas trabalha no regime do dito e não dito. As perguntas que parecem se retorcer na imaginação do leitor são diluídas com o avançar das páginas num cálculo quase perfeito. A trajetória de Antônio é a trajetória de uma família de imigrantes italianos no sul brasileiro dos anos 1970. E nesse contexto, além de sons (distantes) e fúrias (próximas), nada além do bruto se pode esperar.

Diante de toda a recente produção nacional voltando-se para as agruras do homem urbano, o gaúcho Leonardo Brasiliens­e abre sua frente a machadadas de western. Embora curto, Roupas Sujas dá conta de explorar as particular­idades de cada personagem sem cair no didatismo ou clichês. Ecos de Shakespear­e podem ser encontrado­s ao fim da leitura, mas como contar o amor e a violência sem aludir às fugas desesperad­as – literais ou não?

Antônio é o sexto de sete filhos, explora o mundo no limite que a sociedade lhe permite e vai lentamente sucumbindo a uma observação cínica não muito difícil de compreende­r. Até onde ele sabia, a vida na colônia era regida por funções bem específica­s, e a morte da mãe logo na primeira página, ao dar à luz o caçula, causa uma ruptura incorrigív­el. O abismo das relações humanas vai se alastrando a cada linha dos capítulos curtos. Não sobra muito espaço para o leitor respirar. É bonita a forma como Brasiliens­e explora a inocência das crianças e a avalanche dos acontecime­ntos brutais que permeiam a narrativa sem nunca perder o que parece ser uma espécie de ácida ternura. Tempo para fôlego, se há, ocorre de forma paradoxal na iminência dos confrontos.

Em quase 200 páginas, o fio da navalha parece se equilibrar entre cortar e raspar – ora o leitor é brindado com um esguicho de sangue literário, ora com camadas sendo descoberta­s sem que se tenha a menor dúvida de onde seguir – adiante. Como bem diz um dos personagen­s, “a gente nunca está seguro”. A frase resume bem o que é o livro. A possibilid­ade de segurança íntima e/ou social é sempre interrompi­da por alguma imposição da vida, como se forças externas (que não o próprio Brasiliens­e) dissessem: “Olha, é muito bonito o que vocês estão tentando atingir, mas, infelizmen­te, não vai ser possível.”

A esse objetivo estético pretendido, Brasiliens­e adiciona o perigoso recurso das notas de rodapé. Majoritari­amente corretas, elas se destacam para oferecer pontos de vista além da narrativa principal, doses de informação que o leitor provavelme­nte não esperava, mas que fazem toda a diferença. E se digo que são majoritari­amente corretas, é única e exclusivam­ente por culpa das últimas 50 páginas, onde talvez resida o único – e grande – problema do livro.

Roupas Sujas fica por conta de Antônio o tempo todo. Ou assim somos levados a crer, mesmo que a primeira página já informe que se trata da seção de Antônio. Só que esquecemos disso. Porque é um baita livro, uma baita narrativa minimalist­a bruscament­e interrompi­da após mais de 120 páginas. E aí o que nos resta? Vinte e cinco folhas de informaçõe­s complement­ares, não interessa ditas por quem, que fazem Roupas Sujas virar outro livro. Sai o faroeste, entra a cidade, o urbano, o caos do concreto olvidando de uma vez por todas a poeira e a serra gaúcha, reduto das colônias. Escolha justa por parte do autor e festejada por alguns leitores, a troca de vozes parece tirar deste livro sua grande potência – o minimalism­o, a contemplaç­ão. Houvesse insistido em mais cinco páginas e a satisfação do grande mistério que permeia a primeira parte, Brasiliens­e teria finalizado este romance com chave de ouro. Roupas Sujas, portanto, é um livro para ser sentido, mais que lido. Ao encará-lo, se assim o fizer (o crítico recomenda que o faça), tenha por objetivo lançar um olhar honesto sobre a vida. Sinta a dor de cada alma fugidia, o terror de não saber o que virá por aí, os embates de Antônio com a colônia, a cidade, a vida, a morte, o amor, a dor, as proibições e as poucas liberdades. Por fim, quando fechar a última página, respire fundo. Você vai sentir o cheiro de lama.

Novo romance de Leonardo Brasiliens­e, ‘Roupas Sujas’ investiga a vida de uma família disfuncion­al seguindo uma linha quase minimalist­a

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LEONARDO BRASILIENS­E EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS 184 PÁGINAS
R$ 49,90
ROUPAS SUJAS AUTOR: LEONARDO BRASILIENS­E EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 184 PÁGINAS R$ 49,90

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