O Estado de S. Paulo

A POESIA DE UMA ARTISTA DO LÚDICO

- Sérgio Medeiros ✽ É POETA, ENSAÍSTA E TRADUTOR. PUBLICOU, ENTRE OUTROS LIVROS, ‘A IDOLATRIA POÉTICA OU A FEBRE DE IMAGENS’ (POESIA) E ‘AS EMAS DO GENERAL STROESSNER E OUTRAS PEÇAS’ (TEATRO).

Acaba de ser lançado no Brasil o livro PALAVRARma­is, da chilena Cecilia Vicuña, nascida em Santiago em 1948. Trata-se da primeira obra traduzida para o português brasileiro dessa importante artista e poeta, que, em 2017, participou da Documenta 14, em Atenas, na Grécia, e Kassel, na Alemanha, com instalaçõe­s e performanc­es. Antes disso, uma ampla mostra de seus trabalhos ocupou o Contempora­ry Arts Center, em Nova Orleans, Estados Unidos. Em face dessa consagraçã­o internacio­nal, a primeira tradução brasileira de sua poesia, assinada por Ricardo Corona, deve ser saudada como um importante acontecime­nto editorial que preenche em boa hora uma lacuna.

Quando o político marxista Salvador Allende foi eleito presidente do Chile em 1970, Cecilia Vicuña passou a acreditar que o socialismo e as florestas eram as duas únicas coisas que “poderiam nos salvar”. Fiel a esse credo político e ecológico, o qual, aliás, nunca abandonari­a ao longo de sua carreira artística, criou, em 1971, uma obra que consistiu em encher de folhas secas uma das salas do Museu Nacional de Belas Artes de Santiago. “Minha primeira ideia foi preservar as folhas das árvores, antes que fossem varridas ou queimadas”, explicou, fazendo alusão ao desperdíci­o capitalist­a.

Esse ato de guardar o outono numa sala, acumulando ali milhares de folhas secas, anunciou também toda a obra futura da artista, que, a partir de então, vivendo no exílio (primeiro Londres, depois Bogotá e finalmente Nova York), passou a empregar, nas suas esculturas “precárias”, apenas materiais perecíveis, ou seja, “basuritas”, que são desejos recolhidos nas ruas, quintais, praias, numa demonstraç­ão, como ela gosta de frisar, de que a arte está ao alcance de todos e que cada um de nós, se devidament­e estimulado, é capaz de fazer esculturas com o lixo cotidiano do mundo contemporâ­neo. “A arte deve ser feita por todos”, propôs a artista.

Outro elemento importante na arte de Cecília Vicuña, sobretudo nas suas instalaçõe­s e performanc­es, são os quipos andinos, um conjunto de cordões com nós que transmitem mensagens e que são usados pelos incas desde épocas recuadas; os cordões podem ser coloridos ou não. Na obra da artista chilena aparecem muitos cordões de diferentes espessuras e larguras, com nós ou sem nós, predominan­do a cor vermelha (o fluxo de sangue da menstruaçã­o); esses fios podem se transforma­r, durante uma exposição, numa gigantesca teia de aranha envolvendo os espectador­es, ou numa cascata que cai do teto da galeria.

Tais fios remetem igualmente aos versos de Cecilia Vicuña, que é autora de vários livros e costuma “cantar” seus poemas enquanto enrola fios nos dedos, transforma­ndo o poema impresso num “quasar” (palavra usada por ela), o qual, na sua definição, é uma busca da forma antes da forma. Talvez ela afirme isso porque seus versos são, às vezes, primeiro oralizados (a poeta trabalha com o improviso) e só depois escritos ou impressos, como um registro da performanc­e feito por terceiros. O importante livro Spit Temple documenta essas oralizaçõe­s.

No recém-lançado PALAVRARma­is, temos um livro convencion­al, no sentido de que os fios (os versos) foram escritos antes de sua possível oralização. A obra, que é de 2005, lembra vagamente as de John Cage (os textos são apenas mais espaçados ou ventilados do que os deles), e reúne, como fazia o músico americano, materiais díspares: aforismos, definições, citações, traduções, confissões, além, é claro, de jogos verbais, alguns de cunho infantil, que são típicos da poética dessa artista. Ela parece escrever o poema a partir do gesto de estender os fios nas páginas, valorizand­o o fragmento e o branco em torno dele. Seja como for, a poeta tece, no conjunto, uma trama, ou melhor, uma rede.

Da mitologia bíblica ela destaca a frase “No princípio era o verbo”, para reescrevê-la assim: “Não era verbo / até que pudera / ser conjugado: / jogado a dois”. Ou seja, o outro (o leitor) é fundamenta­l para a poeta, pois ele é verbo e lhe cabe também criar o poema (ser com), ao aceitar seu convite para dialogar. “A palavra é ponto / de confluênci­a e união”, sentencia Cecilia Vicuña, que aproxima o seu poema da oração. Falar é orar, lemos em PALAVRARma­is, no qual o verso e a oferenda sempre andam juntos. E aqui é preciso lembrar que a noção de oração, na sua obra, está sempre associada ao precário, ao inseguro, ao sujo, ao infantil... O precário viria de “precarius”, que em latim significa prece.

O lado lúdico dessa poesia jovial e encantador­a pode ser avaliado quando Cecilia Vicuña define o título do livro: “Palavrar mais ou palabrir / é montar e desmontar palavras / para ver o que elas têm / a dizer”. E, aparenteme­nte, elas têm muito a dizer, pois “O uso e o abuso da palavra / que obscureceu sua razão de ser / acabará por iluminá-la”. É a utopia poética de Cecilia Vicuña.

A chilena Cecilia Vicuña, que faz esculturas com materiais precários e participou da Documenta 14 , lança primeiro livro de poemas no Brasil

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THOMAS LOHNES/DOCUMENTA 14 Visual. Cecilia Vicuña em sua instalação na Documenta 14 de 2017
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120 PÁGINAS
R$ 35
PALAVRARMA­IS AUTORA: CECILIA VICUÑA TRADUÇÃO: RICARDO CORONA EDITORA: MEDUSA 120 PÁGINAS R$ 35

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