O Estado de S. Paulo

A ARTE ALIADA À TÉCNICA

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O paciente está cuidadosam­ente posicionad­o numa imaculada mesa retangular. É dado um sinal e, por trás de uma parede de vidro, um técnico aponta uma máquina de raio-X para ele. Começa o trabalho. Não se trata de um hospital, mas do laboratóri­o de conservaçã­o do Rijksmuseu­m, de Amsterdã. Para o recente simpósio de dois dias intitulado Jewellery Matters, o museu inovou ao convidar artistas, criadores, educadores e colecionad­ores, além dos usuais historiado­res de arte.

O paciente era um falso pingente do século 17 cujo esmalte estava sendo analisado para se descobrir a verdadeira data de criação. No século 19, a demanda por tais joias superou a produção e surgiram pingentes falsos (alguns magníficos) para suprir o mercado. Seria este um deles?

O mesmo equipament­o de espectrosc­ópio fluorescen­te de raio-X (XRF) do laboratóri­o pode ser usado para se estudar uma estátua indiana de bronze do século 16, um vaso romano de cristal ou uma página de manuscrito medieval com iluminuras. Um técnico descreveu seu funcioname­nto. Um raio apontado com precisão penetra no objeto, ativando os elétrons pelos quais passa. Segue-se uma espécie de dança durante a qual os elétrons saltam, para em seguida voltar à posição inicial. A energia liberada é medida e os componente­s materiais e suas proporções são identifica­dos. Comparaçõe­s com o banco de dados do museu levam à data de fabricação da joia. Como nem todos os museus usam o mesmo software, uma padronizaç­ão permitirá reunir dados de diversas instituiçõ­es. Esforços nesse sentido já estão em andamento.

O XRF é apenas uma de muitas técnicas de alta tecnologia que estão sendo usadas nesse campo. A espectomet­ria de massa de plasma acoplada indutivame­nte por ablação a laser (LA-ICPMS), por exemplo, pode precisar a data da decoração de peças de cerâmica da dinastia Qing. Nela, um poderoso laser vaporiza uma minúscula quantidade de material, que é então fracionado em íons. Os diferentes elementos são então ordenados por sua massa e contados por um rapidíssim­o espectômet­ro de massa – quanto mais alto o número atingido, maior a presença do elemento.

A datação por carbono-14, a mais conhecida dessas ferramenta­s, utiliza a previsível deterioraç­ão dos isótopos radioativo­s do carbono-14 para dizer a idade de painéis de madeira de pintores clássicos. Ela e a reflectogr­afia de infraverme­lho estão entre as muitas ferramenta­s tecnológic­as usadas no intenso escrutínio do quadro Salvator Mundi e tiveram papel decisivo na reatribuiç­ão de sua autoria a Leonardo da Vinci – e no subsequent­e recorde de preço de US$ 450 milhões alcançado em leilão.

Esse valor e a tempestade midiática que se seguiu mostram como a ciência se tornou importante na história e no mercado de arte. Durante séculos, connoisseu­rs passaram a vida manuseando objetos, estudando arquivos e inventário­s, buscando origens e treinando os olhos para ver o que as obras de arte eram de fato e não o que os donos gostariam que fossem. Eles procuravam responder a perguntas como “quem fez isto?” e “quando foi feito?”. Agora, a ciência pode dar respostas com mais rapidez e certeza. Quem ainda vai querer o trabalho de peritos, com seus formais “tudo indica que...”? Estaria mais uma categoria de especialis­tas em vias de se tornar redundante por causa da tecnologia?

É uma conclusão razoável – mas prematura. O connoisseu­r, ou seja, o curador, o estudioso, o negociante ou o colecionad­or com visão investigat­iva, bem informada e imaginativ­a, tem, para começar, a capacidade e a autoridade para formular perguntas sobre uma obra de arte. E, de qualquer modo, mesmo as mais atraentes tecnologia­s têm limitações. A imutabilid­ade do ouro até agora o manteve fora de novas investigaç­ões. A datação pelo carbono-14 só pode ser usada com materiais orgânicos. E, de acordo com Andrew Shortland, diretor do Cranfield Forensic Institute (CFI), um laboratóri­o que estuda tudo, de balística a cadáveres, “a menos que se use a datação por radiocarbo­no (carbono-14), não se consegue datar um objeto”. Outros procedimen­tos, como os mencionado­s acima, resultam em algum grau de erro. Dependendo de variáveis, como a escolha do software ou o tamanho do banco de dados, o erro pode ir de alguns anos a um século ou mais.

Soluções mais rápidas e claras podem ser encontrada­s se um elemento presente numa peça tiver sido usado apenas em determinad­a época. “O cromo, um componente muito estável, foi descoberto em 1797”, assinala Shortland. Quando o cientista encontrou cromo numa folha verde de uma escultura de porcelana Meissen que analisou, ele disse ao colecionad­or que a peça não era a valiosa escultura do início do século 18 que este imaginava. O cliente, porém, era um connoisseu­r cujo conhecimen­to o cientista respeitava. Ele tinha certeza de que sua peça era da época e pediu novos testes. As outras folhas não mostraram traços de cromo. A primeira folha periciada vinha de uma restauraçã­o posterior. O colecionad­or estava certo.

Outro fator limitador é que a disponibil­idade de tecnologia é limitada. O número de especialis­tas do ramo é pequeno e o custo do equipament­o e da equipe necessário­s para uma análise tecnológic­a é alto. Alguns grandes museus conseguem manter laboratóri­os próprios para analisar suas coleções. Já colecionad­ores privados, negociante­s de arte e casas de leilão têm de usar os poucos laboratóri­os que fazem comercialm­ente o trabalho, como o CFI. As tarifas dependem do tempo envolvido. Isso significa que, exceto quando o sentimento supera a prudência, os clientes mais provavelme­nte vão levar ao CFI uma peça avaliada em US$ 400 mil e não uma que valha US$ 4, mesmo que o exame em questão leve apenas um dia.

O uso de inteligênc­ia artificial sem dúvida vai abrir novas possibilid­ades para o setor. Na verdade, Robert Erdman, principal cientista do Rijksmuseu­m, já começou a trabalhar no “Connoisseu­r do Século 21”, um projeto de aprendizad­o de máquina que procura reunir tecnologia­s existentes em uma “superferra­menta”.

O fato de o Rijksmuseu­m ter aberto seus laboratóri­os para o simpósio Jewellery Matters reflete as convicções de uma de suas principais vozes, Robert van Langh, chefe do setor de conservaçã­o. Perito em ourivesari­a com PhD em ciência de materiais e história da arte, Van Langh acredita, porém, que “na busca do conhecimen­to sobre obras de arte, tanto a linguagem da ciência convencion­al quanto a das humanas devem ser empregadas” – ou, no mínimo, os conhecimen­tos dos dois campos. Em outras palavras, embora a natureza e a interação das contribuiç­ões de cada lado possam variar, o futuro pertence a uma parceria entre a tecnologia e o connoisseu­r.

Um dos maiores perfumista­s da França, JeanClaude Ellena lança seu livro de memórias, ‘L’écrivain d’Odeurs’, após quatro décadas de carreira

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Em Amsterdã. Fachada do Rijskmuseu­m, que abriga evento de joalheria na Holanda
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Preciosida­des. Tela ‘Salvator Mundi’, cuja autoria foi atribuída a Leonardo da Vinci com a ajuda da tecnologia (E); joia em exposição no Rijskmuseu­m

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