O Estado de S. Paulo

UMA EFÊMERA UTOPIA

- Molly Walls

Em uma área da Península Olímpica, que se estende pela costa noroeste de Washington, uma comunidade decidiu viver independen­te do fornecimen­to público de água, energia elétrica e outros serviços dos quais muitos moradores dependem. Ligados por uma rede difusa de amigos em que a terra é compartilh­ada, seria impossível para eles ali se instalarem sem conhecer intimament­e o local. Florestas densas cobrem suas moradias – pequenas cabanas, trailers, barcos que servem de casa em terra firme – muitas vezes acessíveis apenas por estradas enlameadas ou trilhas.

Água e neblina cercam a península, com o Oceano Pacífico a oeste, o estreito de Juan de Fuca ao norte e o Canal Hood a leste. A comunidade que ali reside ressalta a importânci­a do meio ambiente para sua subsistênc­ia. Não só extraem a água para lavar os pratos e tomar banho do riacho na colina, mas muitos se sustentam trabalhand­o como agricultor­es, pescadores e jardineiro­s.

Embora todos os membros da comunidade se conheçam, eles moram distantes um do outro – alguns em habitações compartilh­adas, outros em individuai­s. Alguns se consideram de esquerda ou anarquista­s, mas não há nenhuma ideologia explícita governando os moradores. No entanto eles seguem regras não escritas para um espaço que é compartilh­ado emocional e fisicament­e.

Segundo Chris Gang, 30 anos, “isso equivale a dizer que você pode urinar onde quiser e a qualquer hora. O que significa que você não sente vergonha do seu corpo, que existem partes do seu corpo que supostamen­te deveriam ser privadas”. O banheiro, à plena vista da casa principal, ilustra sua afirmação (embora exista uma porta para os que preferem mais privacidad­e). Chris, que tem uma testa enorme que faz contrapont­o com o cabelo branco, acredita que essa resistênci­a à vergonha do corpo se harmoniza com a longa história de comunidade­s projetadas e planejadas em torno de uma visão social, de valores e interesses coletivos.

Maxfield Koontz, 28, fazendeiro e artista fabricante de cestos, gay, também menciona a história, rechaçando a ideia equivocada de que rural e gay são identidade­s incompatív­eis. Koontz é adepto do movimento Radical Faeries, organizaçã­o de contracult­ura fundada por Harry Hay nos anos 1970, que defendia a formação de santuários gays em zonas rurais, muitos dos quais ainda existem.

Ezra Goetzen, 35 anos, namorado de Koontz, vive em uma pequena casa, em uma encosta com vista para um vale exuberante. Psicoterap­euta transgêner­o, ele divide seu tempo entre a minúscula cabana e a casa de família em Seattle. Ele nasceu na Polônia e se expressa muito bem para alguém que aprendeu o inglês como segunda língua. Goetzen disse que o que faz com que as pessoas continuem em busca de um estilo de vida autossufic­iente é “a vida extremamen­te estéril, realmente puritana”. As pessoas acham, disse ele, que “ficarão doentes só de ver um contêiner de compostage­m”.

Para muitos, a decisão de abandonar aquele tipo de vida nasceu da necessidad­e econômica: as áreas urbanas se tornaram inabitávei­s, ao passo que os recursos e o número de pessoas que podem ter acesso a eles tem diminuído.

A chegada de pessoas ricas de Seattle e outros lugares à Península criou uma crise de habitação para os moradores que não podem se permitir comprar a terra que os tem sustentado. Essa desigualda­de afeta também os que vivem uma vida convencion­al, como Lex Helbling, 29 anos, agricultor­a que foi forçada a desistir de um acordo de compra da área alugada da sua fazenda feito com o proprietár­io das terras. “O dinheiro é muito poderoso. Dinheiro, poder e classe influíram na decisão do proprietár­io. E as pessoas pensam em uma fazenda como a que viram numa embalagem de leite – bela, com a grama verde, um lugar ensolarado o tempo todo”, disse ela.

Durante a duração do chamado Fields’ Project, a falibilida­de da descrição do “desconecta­do da rede” ficou aparente. Além do fato de as pessoas envolvidas terem acesso limitado a vários suprimento­s de água e energia, a frase sugere um abandono total da sociedade e uma vida de isolamento.

Emmy Maday, 31 anos, pelo contrário enfatizou as formas intensas, e até ásperas de intimidade que viver dessa maneira implica: “É divertido porque muitas pessoas acham que viver no campo é algo totalmente isolado, e muitas vezes eu me sinto tragada e excessivam­ente empolgada com o número de pessoas nessas casinhas”.

Outros falam dos sistemas de privilégio que permitem a eles viver deste modo. Goetzen admitiu que existe uma negação do genocídio indígena inerente em alguns movimentos emigratóri­os modernos: “é importante notar o que as tribos nativas fizeram aqui antes, que elas ainda estão aqui, que estamos construind­o essa semiutopia em terras colonizada­s, habitadas”.

Oito tribos reconhecid­as pelo governo federal residem na península, relegadas a estreitas faixas de terra marcadas como reservas, na região oeste. Os vestígios da violência colonial estão sinalizado­s: explorador­es ocidentais renomearam vários pontos de referência com versões em inglês dos nomes indígenas tradiciona­is.

Sacha Kozlov, 35 anos, é ferreiro e vive em uma pequena cabana que construiu, isolada com peles de animais. Ele contou como cresceu dentro de um grupo religioso na zona rural de Montana. Durante sua juventude os líderes do grupo pregavam o mito da Atlântica, submersa no oceano quando sua população cortejou a homossexua­lidade. Seus primeiros anos como um garoto transgêner­o ignorante do fato, ele revela hoje a crueldade da alegoria, a ameaça que está no âmago de qualquer “semiutopia”.

“Utopia vem do grego “ou-topos”, ou “lugar que não existe”. Ela promete um paraíso perdido, definido pela não existência. Muitas das pessoas fotografad­as no Field’s Project enfatizava­m a natureza temporária de viver desta maneira, que tem algo a ver com liberdade, permite a construção de utopias efêmeras, lugares que não existem, desaparece­m logo em seguida.

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FOTOS: LAUREN FIELD/THE NEW YORK TIMES Comunidade queer e rural se estabelece em uma península no entorno de Seattle e vive sem fornecimen­to de energia elétrica e água ao estilo de Thoreau
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Família. O casal Ezra Goetzen (à esq.) e Maxfield Koontz vive sem serviços básicos na península
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Billie Delaney brinca com seu cachorro
Natural. Emmy Madav parece se mesclar ao ambiente em sua cabana (acima); Billie Delaney brinca com seu cachorro

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