O Estado de S. Paulo

O que está em jogo no dia 24

- ROBERTO LIVIANU DOUTOR EM DIREITO PELA USP, É PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO – ATUA NA PROCURADOR­IA DE JUSTIÇA DE DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS –, IDEALIZADO­R E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO

“Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente. Mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí vai ter que matar.” O pensamento, que se refere ao julgamento do próximo dia 24 pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), remetenos aos tempos da pistolagem, do cangaço, da matança impune. É uma ameaça criminosa ao Estado e às instituiçõ­es republican­as, feita sem cerimônia pela senadora Gleisi Hoffmann, do PT do Paraná, que também preside nacionalme­nte o Partido dos Trabalhado­res.

A declaração mostra a magnitude da degradação ética das instituiçõ­es. O quanto inexiste, em primeiro lugar, o compromiss­o de um parlamenta­r com o decoro – afinal, Gleisi Hoffmann ocupa uma cadeira no Senado e tem deveres no plano da dignidade comportame­ntal em relação ao Parlamento e aos representa­dos. Se bem que a pesquisa Latinobaró­metro 2017 detectou que, para 97% dos brasileiro­s, os políticos no Brasil exercem o poder em benefício próprio, despreocup­ando-se do bem comum. Em segundo lugar, a declaração patenteia também a decadência dos partidos políticos no País, que a pesquisa Lapop da Universida­de Vanderbilt 2017 verificou terem atingido o pior grau de credibilid­ade como instituiçõ­es, comparando todas as edições da pesquisa.

No comando do PT, Gleisi afirma que será necessária matança para realizar uma prisão determinad­a pela Justiça. Ou seja, instiga a militância do partido e a própria sociedade à beligerânc­ia.

Na mesma linha de degradação, há poucas semanas Antônio Carlos Rodrigues, o presidente nacional do PR, foi preso por corrupção. Ele não renunciou e a executiva do partido não exigiu sua renúncia. Com Aécio Neves não foi diferente no PSDB.

Vale lembrar que o PT foi fundado, em 1980, sob o comando de Lula, um retirante nordestino obstinado, uma ascendente liderança do mundo sindical que se tornou conhecida liderando greves no ABC na categoria dos metalúrgic­os.

Em plena ditadura, o PT veio trazendo a promessa do novo, apresentan­do-se como um partido para representa­r a classe trabalhado­ra, a classe média, a intelectua­lidade, o mundo artístico, contra o coronelism­o. Pregou a ética e apresentav­a algo aparenteme­nte inovador na cena política brasileira.

Nas primeiras tentativas eleitorais, Lula falava em romper com o FMI e simplesmen­te não pagar a dívida externa, entre outros temas que amedrontav­am o mercado. Em candidatur­as seguintes o discurso foi se modificand­o e amoldando às diretrizes dos marqueteir­os antenados às expectativ­as dos eleitores, até, finalmente, a chegada à Presidênci­a, em 2002.

Mas o processo do mensalão, por fatos ocorridos já no primeiro mandato, logo revelaria que as promessas não correspond­iam exatamente à prática concreta quando da conquista do poder, o que, aliás, Antônio Palocci, que pertencia ao núcleo duro petista, escancarou na histórica carta de saída, quando chegou a afirmar que o PT tinha métodos que lembravam seita religiosa. Aliás, não se tem notícia de punições do PT aos corruptos do partido condenados em definitivo pela Justiça.

Ali ficou claro que a prática política petista não era diferente da dos demais grupos que assumiram o poder, perdendo-se a oportunida­de de mudar o rumo da História do País, que, infelizmen­te, logo se viu imerso em gravíssima­s denúncias de corrupção por atos cometidos por pessoas ligadas ao PT e a muitos outros partidos, na maior investigaç­ão de que se tem notícia no mundo, em magnitude de valores – a Lava Jato, em que, por sinal, Gleisi é investigad­a.

No mensalão evidenciav­a-se a atrofia do Legislativ­o. Os deputados eram comprados com mesadas e quem legislava na prática era o Executivo, totalmente hipertrofi­ado, violando-se o princípio da separação dos Poderes, essencial no sistema republican­o democrátic­o.

Nesse contexto, Lula é acusado criminalme­nte em sete processos e num deles foi já condenado a uma pena de nove anos e seis meses de reclusão por lavagem de dinheiro e corrupção. Sua condenação, sem sombra de dúvida, fere a sociedade brasileira. Mas, por outro lado, representa o amadurecim­ento do sistema de Justiça brasileiro, que hoje não mais se verga a intocáveis.

Não é admissível que qualquer indivíduo, da direita ou da esquerda, reivindiqu­e a condição de intocável. Precisamon­os livrar urgentemen­te do foro privilegia­do, para a prevalênci­a da igualdade de todos perante a lei.

Uma democracia sólida funciona com instituiçõ­es sólidas, com valores sólidos, com respeito ao povo. O eixo fundamenta­l das atenções é o ser humano, e não o Estado ou a Igreja, como era no tempo do Absolutism­o, de direito divino dos reis.

Essa ideia dos intocáveis e da cultura dos privilégio­s remete aos tempos da monarquia absolutist­a, em que tudo era determinad­o pelos humores do rei.

Hoje temos Judiciário independen­te, Ministério Público forte e corajoso e a distribuiç­ão de justiça tem evoluído a cada dia, não se intimidand­o com as velhas raposas.

No próximo dia 24 haverá o julgamento da apelação de Lula pelo TRF de Porto Alegre. Ele não é melhor nem pior que ninguém. Deve ser julgado na forma da lei. E a condenação por essa instância poderá torná-lo inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa, e levá-lo à prisão, nos termos de posição firmada no STF em fevereiro de 2016.

A declaração de Gleisi nega a essência da República. Nega o Estado Democrátic­o de Direito. Chantageia a democracia. É uma afirmação no sentido de não se submeter o acusado ao império da lei. Como se dissesse: Lula é um ser que não pode ser preso jamais, é imune perenement­e, quase como um deus, inalcançáv­el pela lei.

Mas ainda há juízes no Brasil!

A declaração de Gleisi Hoffmann nega a essência da República e chantageia a democracia

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