O Estado de S. Paulo

O futuro que chega

- LUIS EDUARDO ASSIS ECONOMISTA. FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. EMAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

Aideia de que o progresso técnico sempre fez parte do desenvolvi­mento humano e avança de forma contínua é quase intuitiva. Todos os dias, há muito tempo, somos informados a respeito de algo inédito que melhora, de alguma forma, nossas vidas. Mas a verdade é que nem sempre foi assim. Como aponta Steven Landsburg, nos 100 mil anos de existência do homem moderno pouca coisa mudou nos primeiros 99.800. A maioria da população mundial viveu este período “inicial” com recursos pouco acima da subsistênc­ia. Foi a revolução científica e sua aplicação aos processos de produção que transforma­ram o mundo de forma radical e definitiva. Robert Gordon publicou recentemen­te um portentoso livro (The Rise and Fall of American Growth) que adiciona um novo elemento a este tema. Para ele, as mudanças mais importante­s ocorreram entre 1870 e 1970. Foi neste período que a vida cotidiana experiment­ou uma mudança radical de paradigma, no rastro de um fluxo torrencial de invenções. A partir de 1970, segundo ele, a economia americana entrou em uma fase de retornos marginais decrescent­es. Inovações ainda ocorrem, claro, mas a um ritmo menos intenso e sem o impacto devastador do período anterior.

A tese é provocativ­a. A História dirá se Gordon tem ou não razão. Com as lentes desfocadas do presente, o que se pode dizer é que as inovações tecnológic­as continuam rompendo paradigmas e provocando transforma­ções profundas na forma de organizaçã­o da economia e da sociedade.

O impacto das fintechs de crédito digital, por exemplo, pode ser imenso. Estamos aqui falando de portais que replicam, de forma mais rápida e eficiente, o papel dos bancos tradiciona­is de transferir recursos de investidor­es para tomadores de empréstimo. O procedimen­to, embora revolucion­ário, é simples do ponto de vista tecnológic­o. Qualquer investidor pode acessar o portal e escolher um mix de tomadores ao qual é associado um rating de crédito, facilmente fornecido por uma agência terceiriza­da, e uma taxa de juros. Riscos maiores comandam taxas mais altas, com o que o investidor pode escolher a combinação que mais lhe convenha.

A vantagem é que esta desinterme­diação do sistema bancário propicia maiores retornos aos investidor­es e menores custos para os tomadores de empréstimo­s. O portal ganha apenas uma comissão por ter feito o matching entre as duas pontas. Nos Estados Unidos, a maior empresa de crédito digital, Lending Club, já patrocinou empréstimo­s de mais de US$ 30 bilhões. É ainda pouco em comparação com empréstimo­s tradiciona­is, mas a taxa de cresciment­o é elevada.

No Brasil, já engatinham­os nesta direção. O ambiente é favorável, até porque o spread bancário continua pantagruél­ico (20 pontos porcentuai­s em novembro último, segundo o Banco Central) e é dele que se nutrem as empresas que promovem a desinterme­diação. Mais que isto, a queda das taxas de juros tornou os investidor­es mais dispostos a correr riscos.

Avanços no crédito digital podem mudar a face do sistema bancário, reduzindo a importânci­a dos bancos

Avanços no crédito digital podem mudar a face do sistema bancário, reduzindo a importânci­a dos bancos de varejo na captação de recursos e na distribuiç­ão de crédito. Já se falou do fim do telefone, dos jornais e da televisão. Não tardará para discutirmo­s o fim dos bancos, na forma que hoje os conhecemos. Atolado na discussão de temas emergencia­is, o Banco Central erra ao se atrasar na definição de um marco regulatóri­o que proteja investidor­es e tomadores. Melhor absorver esta inovação e colocá-la sob sua guarida. O futuro chega todos os dias – às vezes mais, às vezes menos. É sempre bom estarmos preparados.

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