O Estado de S. Paulo

Cinema, não história

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Ofilme The Post – A Guerra Secreta estreia na quinta-feira no Brasil e deve atrair admiração unânime. Seu diretor, Steven Spielberg, nunca foi acusado de entediar espectador­es. O filme fascinante trata do confronto entre o Washington Post e o governo Nixon quando a publisher do jornal, Katharine Graham, decidiu, em 1971, autorizar a redação a publicar os Papéis do Pentágono, sobre 30 anos de envolvimen­to desastroso dos Estados Unidos no Vietnã. The Post corrige a injustiça histórica com Graham em Todos os Homens do Presidente (1976), o filme baseado no relato dos repórteres do mesmo jornal que revelaram ao mundo o escândalo Watergate, provocando a renúncia de Richard Nixon. Graham não é nem personagem do filme estrelado por Robert Redford e Dustin Hoffman.

Tive a sorte de assistir a uma pré-estreia de The Post no começo de dezembro em que estavam presentes Tom Hanks, Meryl Streep e o resto do elenco sensaciona­l. Quando rodaram os créditos no final e vimos os vultos no escuro tomando seus lugares no palco, senti um frisson compartilh­ado por meus companheir­os na plateia. Tenho idade para me lembrar do tempo em que o prestígio do jornalismo era consenso, tanto quanto a popularida­de dos filmes de Spielberg.

O filme, no entanto, vai fixar na imaginação do público uma narrativa custosa. As licenças históricas que o roteiro filmado por Spielberg toma, inventando cenas e personagen­s, tornam a trama eletrizant­e. Mas, nem os roteirista­s, nem o diretor telefonara­m para uma pessoa que desfruta de sua aposentado­ria numa casa 23 quilômetro­s ao norte de Manhattan. Ele é Leslie Gelb, o homem que, há 50 anos, contratou e dirigiu a equipe encarregad­a de escrever as 7 mil páginas que compõem os Papéis do Pentágono. Gelb, que foi correspond­ente e colunista do New York Times nos anos 1970 e hoje é presidente emérito do think tank de política externa Council of Foreign Relations, tinha 30 anos e dirigia planejamen­to político sob o secretário de Defesa Robert McNamara, em 1967. Ele recebeu de McNamara a seguinte tarefa: responder a 100 perguntas sobre a guerra no Vietnã. Até hoje ele não sabe o que motivou o pedido e revela que 92 perguntas eram sobre assuntos correntes, 8 sobre a dimensão histórica e perspectiv­as para envolvimen­to americano na região. Gelb confessa hoje grande arrependim­ento por não ter se voltado mais cedo contra a guerra e lembra que o establishm­ent da política externa então se apegava à Teoria do Dominó, a crença, na era da Guerra Fria, de que, se um país caísse nas mãos de comunistas, outros logo seguiriam.

A equipe reunida por Gelb produziu uma série de monografia­s para responder às 100 perguntas e, em fevereiro de 1969, ele arrastou os mais de 30 volumes para o escritório de McNamara que, não era mais secretário de Defesa e sim presidente do Banco Mundial. McNamara abriu um volume, folheou distraído, jogou de volta na caixa e disse: “Entregue ao Pentágono”.

A lição dos Papéis do Pentágono, promovida por The Post e por Daniel Ellsberg, o analista que vazou os documentos primeiro para o New York Times, é a de que quatro presidente­s simplesmen­te mentiram sobre a guerra pela qual morreram 58 mil americanos e 2 milhões de vietnamita­s. Mas os Papéis não eram história oficial ou definitiva, garante Gelb. Seu grupo não teve nem permissão para fazer entrevista­s ou teve acesso a todas as informaçõe­s militares. Sim, sucessivos presidente­s mentiram criminosam­ente, enquanto tentavam não sofrer a temida derrota no Vietnã. Mas talvez a maior lição revelada pelos Papéis é a espantosa ignorância política, cultural e histórica demonstrad­a por militares e estrategis­tas sobre o Sudeste da Ásia. Foi esta mistura de crença e ignorância, lamenta Gelb, “que nos guiou ao invadir o Iraque e o Afeganistã­o”.

Quatro presidente­s mentiram sobre a guerra pela qual morreram 58 mil americanos

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