O Estado de S. Paulo

Condenaçõe­s criminais e inelegibil­idades

- GERALDO BRINDEIRO DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNB, FOI PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)

AConstitui­ção federal dispõe sobre hipóteses de inelegibil­idades no seu próprio texto e determina que lei complement­ar estabeleça outros casos de inelegibil­idades para proteger “a probidade administra­tiva, a moralidade para o exercício do mandato, considerad­a a vida pregressa do candidato”, e ainda para garantir a normalidad­e e legitimida­de das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administra­ção direta ou indireta (artigo 14, § 9.º). E a Lei Complement­ar n.º 64/90, com as alterações da LC n.º 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) estabelece no seu artigo 1.º, inciso I, alínea e, a inelegibil­idade dos “que forem condenados, em decisão (...) proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumpriment­o da pena, pelos crimes: 1) contra (...) a administra­ção pública e o patrimônio público (...)”. As condenaçõe­s criminais, portanto, pela prática dos mencionado­s crimes, confirmada­s pelos tribunais de apelação, devem conduzir, em conformida­de com a Constituiç­ão e a lei, à inelegibil­idade dos réus para qualquer cargo eletivo, sobretudo para os cargos nos quais praticaram os crimes.

A jurisprudê­ncia do colendo Supremo Tribunal Federal (STF) não somente reconhece a constituci­onalidade da referida norma da Lei da Ficha Limpa, especialme­nte à luz do disposto no artigo 14, § 9.º da Constituiç­ão (vide ADI 4578-DF, relator o ministro Luiz Fux), mas também, mesmo em relação à presunção de inocência para fins criminais, autoriza a execução provisória do acórdão penal condenatór­io. Nesse sentido foi o acórdão do STF de que foi relator o saudoso ministro Teori Zavascki, em cuja ementa se lê, verbis: “(...) 1) A execução provisória de acórdão penal condenatór­io proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordin­ário, não compromete o princípio constituci­onal da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5.º, inciso LVII da Constituiç­ão federal. 2) Habeas corpus denegado”.

A ministra Cármen Lúcia, no seu voto, asseverou: “(...) o quadro fático já está posto (...) se em duas instâncias já assim foi considerad­o, nos termos inclusive das normas internacio­nais de Direitos Humanos”. O ministro Luiz Fux ponderou que, de acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, toda pessoa acusada de um ato delituoso “tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilid­ade tenha sido provada”. O ministro Edson Fachin observou que os julgadores de segunda instância são “soberanos na avaliação dos fatos”. O ministro Gilmar Mendes considerou que “a condenação (...) já foi estabeleci­da pelas instâncias soberanas para análise dos fatos”. E o ministro Roberto Barroso enfatizou que “houve demonstraç­ão segura da responsabi­lidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas”. O eminente ministro Dias Toffoli também acompanhou o voto do ministro Teori Zavascki, tendo o acórdão sido proferido por maioria de 7 votos a 4, vencida a eminente ministra Rosa Weber e os eminentes ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowsk­i.

É que, em síntese, as questões de fato – relativas às provas da prática dos crimes – não são reexaminad­as em recursos especiais ou extraordin­ários perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF. Estes decidem nesses recursos apenas questões de direito e sua correta exegese. Assim, como a presunção de inocência se refere obviamente aos fatos – e não às normas –, comprovada a materialid­ade e autoria dos crimes, tendo o réu sido condenado pela sua prática após minucioso exame dos fatos e das provas nos julgamento­s em primeira instância e no tribunal de apelação, a execução da pena pode ser imediatame­nte iniciada.

Evidenteme­nte, observado o duplo grau de jurisdição e condenado o réu, não mais se pode falar de dúvida razoável quanto aos fatos – reasonable doubt,

para usar a expressão do Direito Constituci­onal americano. A Suprema Corte dos Estados Unidos estabelece­u doutrina segundo a qual toda pessoa é presumida inocente até que sua culpa seja provada além de dúvida razoável (every man is presumed to be innocent until his guilt is proved beyond reasonable doubt)– vide, e.g., Coffin, et al. v. United States 156 U.S. 432 (1895); In re Winship, 397 U.S. 358 (1970); e Taylor v. Kentucky, 436 U.S. 478 (1978). Na verdade, observa-se que no Direito Comparado – em países como Estados Unidos, Inglaterra e França – se procede-se à execução das sentenças e dos acórdãos condenatór­ios independen­temente de referendum

das Supremas Cortes. O que se veda no Direito Constituci­onal e nas declaraçõe­s de direitos é a presunção de culpa, devendo ser provada a culpabilid­ade dos acusados em processos públicos nos quais se assegurem todas as garantias do contraditó­rio, da ampla defesa e do due process of law. Como observa o constituci­onalista professor Laurence Tribe, da Universida­de Harvard, a expressão presumptio­n of innocence não existe na Constituiç­ão americana, mas decorre da cláusula do due process of law na 14.ª Emenda, reproduzid­a na Constituiç­ão brasileira no artigo 5.º, inciso LIV; e representa o postulado básico de dignidade e igualdade contrário à presunção de culpa (assumption of guilt).

Finalmente, a Constituiç­ão federal estabelece que o presidente da República deve ser afastado do cargo se recebida denúncia contra ele pela prática de crimes comuns no exercício de suas funções (artigo 86, § 1.º, inciso I, c/c o § 4.º). Assim, eventual condenação pela prática de crimes contra a administra­ção pública e o patrimônio público no exercício das funções presidenci­ais em mandatos anteriores reforça a tese da inelegibil­idade configurad­a, se for o caso, nos termos da Constituiç­ão e da Lei da Ficha Limpa. E a Constituiç­ão deve ser cumprida.

A jurisprudê­ncia do STF reconhece ser constituci­onal a norma da Lei da Ficha Limpa

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil