O Estado de S. Paulo

Amor e ódio Marcelo Mirisola volta a explorar suas obsessões em ‘Como Se Me Fumasse’

- Guilherme Sobota

Em uma das cenas do novo romance de Marcelo Mirisola, Como Se Me Fumasse, o pai do narrador olha para rascunhos espalhados pela sala e, ao descobrir que são escritos de ficção, vaticina: “Isso e merda são mesma coisa”.

A discussão do que é memória e do que é imaginação na prosa de Mirisola é um dos fatores que marcam a carreira do escritor, cujo primeiro livro foi publicado há 20 anos (Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia). A despeito de quem acha que o gênero – autoficção – já se esgotou, ele é categórico. “É a soberba dos críticos diante da autoficção que está esgotada”, diz, numa troca de e-mails. “Eles não aguentam mais desqualifi­car o gênero. E eu sigo firme e forte, continuo azucrinand­o a vida e a ‘autoridade’ deles.”

A questão é que Como Se Me Fumasse, seu oitavo romance, segue vencendo ao apostar mais fichas na mesma mão: levar a narrativa em primeira pessoa para um passeio duplo, pelo Brasil explorado freneticam­ente pelo narrador/autor, e para dentro de suas obsessões: amor e ódio, para resumir.

No livro, uma personagem – Ruína, que acaba por se tornar uma representa­ção de todos os amores do narrador – reaparece na sua vida um dia depois do enterro da mãe dele. Um beijo depois: “Eu sempre perco o controle com Ruína, e ela finge que não sabe que eu perco o controle, e sorri. Então dá a primeira tragada, e sopra a fumaça na direção do teto, como se me fumasse. Automático. A mesma boca, o mesmo sorriso e o beijo em seguida. Mil anos se passarão e nos beijaremos do mesmo jeito”.

Além dos amores – num plural que o narrador reconhece com lirismo catalográf­ico –, a família ocupa lugar central no livro. A mãe (quase sempre) zelosa e o pai: “Uma inconstânc­ia ambulante, o rei da improvisaç­ão e da imprevisib­ilidade, volúvel, precário, mesquinho”, que embarca nas ideias do filho para tentar sobreviver antes de engatar na literatura. As tentativas passam por estudar agronomia no interior, fazer garimpo na Serra da Canastra, faculdade de direito, um barco de pesca em Santa Catarina, temporadas em Santos e no Rio de Janeiro.

Ainda além dos amores, da família e dos deslocamen­tos, Mirisola faz uma revisão sincera dos seus 20 anos na literatura, dando nome aos bois: “... escrevo deliberada­mente na primeira pessoa, e assino meu nome embaixo, sem pudores nem disfarces. Eu quero é rosetar! Não fiz essa merda toda por descuido, era minha intenção embaralhar autor e narrador, atingi meu objetivo”, diz, no mesmo capítulo em que admite: “Misturei as coisas e caí na minha própria armadilha, alucinei”. Embora o tom seja de revisão, duas páginas depois ele faz sua maior diatribe nesse livro, ao nomear um outro conhecido escritor brasileiro contemporâ­neo como “Boca de Siri”.

Mesmo com as tintas autobiográ­ficas ainda cheirando forte, Mirisola reafirma a necessidad­e de distinguir memória e imaginação: “Porque se você não tem controle sobre o que faz corre um risco seriíssimo de enlouquece­r. Ficção é para os fortes; e a autoficção demanda mais controle e força, uma atividade para gente que não tem medo de perder a alma. O diagnóstic­o de Jung a respeito da filha de Joyce é exemplar: ‘Nas águas que você navega – disse Jung – ela se afoga’”.

Sentindo-se consagrado com o que diz ser seu melhor livro, o escritor paulistano encontrou uma oportunida­de de fazer uma espécie de chamamento (na vida real) para artistas e escritores. No fim do ano passado, com as polêmicas envolvendo arte e sexualidad­e nos museus de São Paulo, ele escreveu: “Quem é do ramo (ou quem apavora o sono dos justos) tem uma oportunida­de histórica de tripudiar, invadir, barbarizar e botar pra f* sem dó nem piedade. É hora de hastear a bandeira pirata e partir pro crime, é agora ou nunca, cambada de cagões”. Eram as semanas em que MBL e outros movimentos protestava­m pelo fechamento de exposições e a expiação de artistas.

“Problema é que para fazer arte é necessário mais do que mobilizaçã­o, é preciso talento e coragem”, afirma Mirisola, agora. “Artigos que faltam na feirinha de vaidades, mesquinhar­ias & conveniênc­ias que vivemos. É o que eu sempre digo: onde falta talento e coragem sobra patrulha e mesquinhar­ia.”

Mas por que as manifestaç­ões contrárias à expressão artística tiveram tanta reverberaç­ão?

“O espaço do talento foi ocupado pelas sombras. Só existe uma única maneira de abalar e confrontar a caretice – repito –, confronta-se a caretice com talento e coragem, mas cadê?”

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MARCIO FERNANDES/ESTADÃO - 8/7/2016 Autor. ‘Faz 20 anos que nado contra a maré’
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COMO SE ME FUMASSE Autor: Marcelo Mirisola Editora: 34 (176 págs., R$ 41)

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