O Estado de S. Paulo

O vendedor de greves

- JOSÉ NÊUMANNE JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Sábado, o País ficou sabendo que o presidente Temer não se intromete em assuntos do Judiciário, mas resolveu meter sua colher imprópria no julgamento de Lula, hoje, no Tribunal Federal Regional da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. À pergunta formulada em entrevista exclusiva pelos repórteres da Folha de S.Paulo Gustavo Uribe e Marcos Augusto Gonçalves sobre como vê o julgamento e se seria melhor que o réu concorress­e nas eleições este ano, o presidente respondeu: “Não posso dizer uma coisa que está sob apreciação no TRF. Agora, acho que se o Lula participar, será uma coisa democrátic­a, o povo vai dizer se quer ou não. Convenhamo­s, se fosse derrotado politicame­nte, é melhor do que ser derrotado (na Justiça) porque foi vitimizado. A vitimizaçã­o não é boa para o país e para um ex-presidente”. Pois, segundo Temer, caso Lula seja impedido de se candidatar, isso vai “agitar o meio político”. Ora!

Não é o caso de aqui citar devotos, correligio­nários e parasitas oportunist­as que sonham se coligar com Lula no pleito. Mas, sim, destacar figurões do governo e da oposição – Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, João Doria, Beto Richa, Ronaldo Caiado, Rodrigo Maia, Raul Jungmann – e vários interessad­os que dispararam esse mesmo truísmo absurdo e suspeito. No Estado de Direito, vigente no Brasil, não há a hipótese de candidatos escolherem que adversário­s preferem para a disputa. Ou há?

Eles deveriam é atentar para o pronunciam­ento de um eventual beneficiár­io da condenação do ex-líder metalúrgic­o hoje, o ex-governador do Ceará Ciro Gomes, presidenci­ável do PDT. Ciro disse que torce pela absolvição de Lula, mas se negou a crer que haja uma conspiraçã­o política no Poder Judiciário contra o petista. Em rara prova de lucidez, o ex-ministro do próprio disse que imaginar um complô “ofende a inteligênc­ia média do País”. E ainda advertiu que “a consequênc­ia inevitável desta constataçã­o teria desdobrame­ntos tão graves que a um democrata e republican­o só restaria a insurgênci­a revolucion­ária”. É isso aí!

Contrarian­do sua vocação de trânsfuga contumaz, ele é fiel ao juramento de cumprir e defender as leis do País, feito quando assumiu o governo do Ceará, em 1991. Ao contrário, o presidente e alguns citados, ainda vigente o juramento, cometem delito de lesa-pátria, rasgam a Constituiç­ão e posam de generosos e benevolent­es. Segundo meu avô, de esmola grande cego desconfia. Não é o caso desses que se fingem de cegos para se dar bem no futuro, caso tenham de se submeter ao Estado de Direito, no qual todos têm de seguir a lei.

Quem canoniza o réu investe no falso conceito de que voto substitui Justiça e cancela penas, como pregava Antônio Carlos Magalhães à época do mensalão. E deu no que deu!

Nisso, aliás, todos eles têm no condenado a nove anos e meio de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a mais completa síntese de campeões da patranha, celebrados nas figuras de João Grilo e Chicó na obra-prima da comédia popular brasileira O Auto da Compadecid­a, de Ariano Suassuna. Basta lembrar que todos manifestam temer uma convulsão social com a eventual confirmaçã­o da condenação do Pedro Malasartes dos palanques e palácios. Afinal, ele seria o mais popular líder político do Brasil em todos os tempos. É mesmo? Por que, então, Lula não viaja em aviões de carreira como os mortais comuns e só comparece a eventos controlado­s pela militância cega por devoção e paixão?

Lula ascendeu entre heróis nacionais como líder das greves de metalúrgic­os do ABC paulista em plena ditadura militar, da qual foi vítima. Na verdade, como está explicado no meu livro O que Sei de Lula (Topbooks, 2011), ele teve no general Golbery do Couto e Silva seu propulsor no início da carreira de dirigente. O criador do Serviço Nacional de Informaçõe­s usou sua liderança carismátic­a para impedir que Brizola empolgasse os movimentos sindicais e solapasse o regime.

Emílio Odebrecht, pai de Marcelo, citado nas delações de 77 executivos de sua empresa e de quem Lula é o “Amigo” da tal lista, contou ao depor na delação premiada a procurador­es federais da Lava Jato, a mais bem-sucedida operação policial e judicial da História, que Lula impediu greves em empresas suas, tendo recebido dinheiro para fazê-lo.

Foi nesse ínterim que Lula virou santo popular, por ter sido preso e processado após a intervençã­o no sindicato que presidiu nos anos 70 e 80. Mas sua passagem pela carceragem do Dops paulista à época da ditadura foi mais confortáve­l que a de outros companheir­os de cela, conforme testemunho do delegado Romeu Tuma Jr., secretário nacional de Justiça no primeiro governo Lula e filho do policial homônimo, em Assassinat­o de Reputações (Topbooks, 2013). Tuma relata que o falso mártir foi agente de informaçõe­s do pai, a quem contava os segredos do movimento grevista. Se Odebrecht e Tuma não mentiram, em vez de vítima, o seis vezes réu de hoje foi, de fato, o que os colegas sindicalis­tas chamariam, à época, de “traíra” dos trabalhado­res e “dedo-duro” dos militantes de esquerda, que sempre o endeusaram. Ninguém, até agora, desmentiu na Justiça os depoimento­s aqui citados.

Em périplos pelo País, Lula conta lorotas que mais se acomodaria­m em narrativas das aventuras de grandes mentirosos do folclore. Como no caso recente em que algum intelectua­loide do auditório do teatro Oi Leblon, núcleo de rebeldia juvenil na ditadura sob o nome de Casa Grande, lhe soprou que o assassino de Antônio Conselheir­o foi ancestral do presidente do TRF-4, em que hoje está sendo julgado. De fato, o tio-trisavô de Thompson Flores era coronel, não general, e morreu três meses antes do beato de Canudos.

Essa foi apenas uma piada mentirosa e sem graça. Mais graves são as patranhas misericord­iosas de pretensos adversário­s, como Temer, que põem as instituiçõ­es em risco para tornar um mentiroso serial acima da lei e fora da democracia.

Esforço para livrar Lula da lei prejudica mais a democracia do que as mentiras que ele diz

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