O Estado de S. Paulo

A adjudicaçã­o em tempo de incertezas

- JOSÉ EDUARDO FARIA PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Apossível condenação de um ex-presidente da República pelo TRF-4 por corrupção e as discussões que serão travadas sobre a possibilid­ade de prisão após condenação em segunda instância estão dando enorme visibilida­de às questões relativas ao alcance da adjudicaçã­o judicial. Adjudicaçã­o é a atividade realizada pelos tribunais na resolução de conflitos. É o processo pelo qual os juízes, ao aplicar as leis, atribuem sentido concreto a normas e princípios. Para tanto dispõem de uma margem de discricion­ariedade – a liberdade de escolha entre diferentes alternativ­as legais, na qual está implícito um juízo de conveniênc­ia e oportunida­de. Numa Corte Suprema, a função dos juízes é dotar os valores constituci­onais de significad­o, levando em conta um texto legal, além de expectativ­as comuns de justiça e padrões éticos. Mas qual é a distância entre decisão discricion­ária e abuso de interpreta­ção?

A liberdade do intérprete não é absoluta e a interpreta­ção não é uma subsunção mecânica do fato à norma. Juízes não são livres para atribuir qualquer significad­o que desejem às leis. Quanto mais se distanciam dos textos legais, mais abusos podem cometer. Os limites da discricion­ariedade, porém, são porosos. Como os tribunais são reativos, só agindo quando acionados, os juízes têm de responder às demandas que lhes são encaminhad­as. Por isso não controlam suas agendas, o que faz com que a adjudicaçã­o possa dar vez à judicializ­ação da vida política – algo inevitável em certos momentos, dada a necessidad­e de uma arbitragem judicial de conflitos não resolvidos pelas instâncias políticas. Esse fenômeno também acarreta mudanças significat­ivas nos modos de intervençã­o na vida social e econômica. Em sociedades complexas, julgamento­s dos tribunais superiores exigem um compartilh­amento de poder e responsabi­lidade pelas decisões. Quanto mais polêmicos são os casos sub judice, mais esses tribunais dependem de complexas estruturas organizaci­onais.

Num universo burocrátic­o como o dos tribunais, a responsabi­lidade individual dá lugar a uma responsabi­lidade corporativ­a. Talvez não seja possível sustentar a responsabi­lidade de um juiz individual por uma decisão, mas é possível sustentar a responsabi­lidade do Judiciário como entidade corporativ­a, lembra o jurista Owen Fiss, de Yale. O problema é que, como Hannah Arendt apontou ao discutir a banalidade do mal, durante o julgamento de Adolf Eichmann por crimes de genocídio, a responsabi­lidade corporativ­a pode ser um substituti­vo fraco para a responsabi­lidade individual. Eichmann, que não tinha histórico antissemit­a, cumpriu ordens pensando sóem subir na carreira, sem refletir sobre a barbárie inerente à burocracia de que fazia parte. No caso da burocracia judicial, o risco é exponencia­do pelo princípio da independên­cia judicial, que deixa os cidadãos dependente­s de Cortes que não podem ser responsabi­lizadas corporativ­amente por seus equívocos.

O protagonis­mo dos juízes e a judicializ­ação da política – que cresceram na medida em que a Constituiç­ão incorporou em matérias antes tratadas por leis ordinárias – não são imunes a esses riscos. Constituci­onalizar essas matérias foi um modo de converter política em Direito, o que multiplico­u os focos de tensões, pois a judicializ­ação reduz o espaço da esfera política. Quando vão além do papel de assegurar o respeito à ordem jurídica, esses tribunais são cobrados pelos efeitos de seus atos, sem que haja mecanismos institucio­nais para controlá-los. Compensa enfrentar esses riscos, em nome da concretiza­ção de direitos civis e sociais? Ou seria mais prudente optar pela autoconten­ção judicial, em nome da harmonia entre os Poderes?

A História registra não só protagonis­mos judiciais desastroso­s, mas também experiênci­as bem-sucedidas, como a promovida pela Suprema Corte americana sob a presidênci­a de Earl Warren (1953-1969). Trata-se do caso Brown vs. Board of Education, que começou com o pedido de uma família negra para que a Justiça reconheces­se o direito de matricular a filha numa escola situada num bairro de famílias brancas. A implementa­ção das decisões da Corte exigiu a substituiç­ão dos sistemas duais de educação, com escolas separadas para negros e para brancos, por um sistema unitário de escolas dessegrega­das. Isso demandou novos critérios de escolha de alunos, novas rotas de ônibus entre distritos escolares e mudança curricular. Para assegurar o fim da segregação a Warren Court desenvolve­u novas formas de avaliar a relação entre o direito à igualdade na educação e os remédios por juízes e enfrentou resistênci­as corporativ­as da burocracia governamen­tal. O empenho da Corte na afirmação da igualdade racial propiciou inovações processuai­s, levando a uma adjudicaçã­o alargada capaz de enquadrar essa burocracia e mudar a gestão de escolas. A partir do caso Brown vsBoard of Education, a Suprema Corte impôs reformas estruturai­s, dando ao princípio da igualdade o mesmo peso dado à ideia de liberdade, como valor constituci­onal. Alguns equívocos foram corrigidos pela gestão conservado­ra do sucessor de Warren, o juiz W. Burger (1969- 1986). Com nova configuraç­ão da Corte, ele procurou reverter processos antissegre­gação que ainda tramitavam e mudar entendimen­tos anteriores, mas não alterou na essência os avanços propiciado­s pela Warren Court.

O caso ilustra o que fora dito décadas antes por outro membro da Corte, O. Wendell Holmes Jr.: a vida do Direito não é lógica, é experiment­o. É a avaliação desses experiment­os por nossos tribunais que precisa ser feita, para constatar se as mudanças ocorridas nas formas de adjudicaçã­o configuram desvirtuam­ento das funções judiciais ou se têm sido decisivas para assegurar a integridad­e da democracia – principalm­ente neste momento em que alguns políticos processado­s por corrupção denunciam uma aliança entre juízes e mídia, para criminaliz­ar a política, enquanto outros pedem o fim da prisão em segunda instância e prometem “pôr fogo” em Porto Alegre.

Tema ganha visibilida­de no momento em que políticos prometem ‘pôr fogo’ em Porto Alegre

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