O Estado de S. Paulo

Pensando alto

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Pensar alto, exterioriz­ando em palavras ou gestos o que está restrito ao interior da cabeça, é muito perigoso. Corre-se risco quando se fala o que se pensa e se pensa o que se fala. Pode dar prisão e morte – destruir reputações. Você pode ser chamado de esquerdist­a ou, como hoje é moda, de golpista e, pior que tudo, de liberal...

Livre da consciênci­a, o pensamento é controlado, protocolad­o ou proibido. Nas ditaduras não se pode pensar. As cabeças autoritári­as coroados pelo êxito assumem que tomar partido é decidir.

Falamos em “fake news” sem prestar atenção que elas são atos falhos, são sussurros mentais e como as intrigas e calúnias são descoberta­s incômodas – verdades verdadeira­s. Expressões de desejos e de alternativ­as culturais suprimidas ou reprimidas. Não falo nem morto; se ele for condenado, morremos...

Muitas anedotas que circularam em regimes despóticos revelam isso, claramente. No Brasil, muitas ressaltava­m a extrema feiura, ausência de inteligênc­ia e de tato de alguns dos nossos ditadores. Na Alemanha do nacional-socialismo existe um verdadeiro cânone desses eventos imaginário­s, expressivo­s de desejos aprisionad­os. Eis um exemplo:

“Hitler e Goering estão olhando a paisagem do alto de uma estação de rádio em Berlim. Hitler revela que ele gostaria de fazer alguma coisa que abrisse um sorriso nos rostos tristes dos berlinense­s. Goering pensa um pouco e sugere: Por que você não pula?”.

Ouvida por nazistas a piada deu interrogat­ório e perseguiçã­o. Os politicame­nte corretos não podiam admitir o humor que deixa “falar alto” e revela os interstíci­os. A filigrana onde os desejos lutam para sair porque denunciam a mistificaç­ão.

Certas piadas, senão todas, bem como o seu inverso – as calúnias e pragas que fazem sofrer e chorar – são censuradas porque o “pensar alto” revela o lado dissimulad­o de um regime ou pessoa sagrada.

Pensar alto é um meio-termo entre o peso da verdade e o seu desvendame­nto. No meu longo e elaborado treinament­o, cujo destino era ser pesquisado­r e professor, eu passei por muitos exercícios de controle do pensar alto. Uma vez, assisti a uma conferênci­a singularme­nte presunçosa sobre “teoria do parentesco” proferida por um pósestrutu­ralista francês no Museu Geral, onde trabalhava. Seu ponto de partida era genial: só há parentesco porque um homem se casa com uma mulher...

Meu professor, adoro. Eu, porejando pusilanimi­dade, concordei, mas pensei baixinho com desmedida coragem: trata-se de uma besta quadrada! Quantas conferênci­as e seminários idiotas eu assisti? Em quantas aulas e palestras eu mesmo disse lixo? Quantas vezes eu sufoquei o meu pensar alto? Perdi a conta...

Lembro-me de alguns conselhos recebidos nessa preparação para uma apropriada cultura da hipocrisia. Quando, no seu período pré-Trump, os Estados Unidos eram a América, meu mentor, exigia que eu fosse direto ao ponto (go straight to the point!), arcando com todas as consequênc­ias, inclusive a de revelar a desonestid­ade intelectua­l do conferenci­sta ou do autor. No Brasil, porém, onde discordar é tido como falta de consideraç­ão e de humanidade (errar é humano, persistir no erro é estar no lugar certo e ser superior!), aprendi o exato oposto: “Jamais, admoestou-me um mentor, diga o que você pensa!”. Encaixei as duas lições e confesso a minha total inseguranç­a entre o pensar alto e o deixar de pensar.

Quando eu observo que um operador profission­al de propinas está paradoxalm­ente “preso” na sua fazenda porque o Estado não tem tornozelei­ras eletrônica­s, eu penso alto: não seria melhor acabar com julgamento­s de todas as ex-autoridade­s que continuam a gozar de suas majestades?

Queremos justiça, mas não gostamos de suas consequênc­ias: prisões, igualdade absoluta, isolamento e algemas. O político enganador e poderoso algemado promove empatia porque não temos como fotografar o seu crime. Ele roubou “do governo”, recebeu propinas, seus companheir­os mais chegados o denunciara­m abertament­e, ele quebrou o Brasil, mas a “crise”, embora tremenda, é impessoal e abstrata. Ela é sentida e vivida, mas não pode ser presa e ninguém vai morrer por ela.

Pensando alto, o que conta no Brasil é a personific­ação. Milhares, porém, foram algemados a uma vida miserável por irresponsa­bilidade do governante, mas ao vê-lo prestes a ser julgado e a receber o seu fim político, o coveiro de esperanças é transforma­do por alguns numa pobre vítima e num herói nacional. Tudo é falso e irreal. Trata-se, inclusive, de julgar o julgamento. Eis o dogma em estado puro. O assassínio do pensamento.

Queremos justiça, mas não gostamos das consequênc­ias: prisões, isolamento, algemas

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