O Estado de S. Paulo

Uma lei só para Lula?

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Só pode ser piada de mau gosto a suposta disposição de convocação do plenário do STF para revisão da possibilid­ade de execução de pena após condenação em segunda instância.

Certamente só pode ser uma piada de mau gosto a história, ventilada nos últimos dias, a respeito da suposta disposição da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, de convocar o mais rápido possível o plenário da Suprema Corte para uma revisão da possibilid­ade de execução de pena após condenação em segunda instância. Se isso ocorresse, o STF estaria abandonand­o sua função de corte constituci­onal – responsáve­l por aplicar a Constituiç­ão e assegurar o equilíbrio de todo o sistema de Justiça – para se transforma­r em casa de benemerênc­ia para o sr. Lula da Silva.

Em 2016, o STF firmou jurisprudê­ncia no sentido de que, após a condenação penal em segunda instância, é possível dar início ao cumpriment­o da pena. Restabelec­ia-se, assim, o entendimen­to de que não é necessário esgotar todos os recursos para que o réu possa ser preso. Na ocasião, a maioria dos ministros entendeu que a prisão após a condenação em segunda instância não fere o princípio da presunção da inocência, já que, nesses casos, a presunção foi esgotada, juntamente com o exame dos fatos que configuram a culpa. Recursos posteriore­s referem-se exclusivam­ente a questões de direito.

A decisão do STF de permitir a prisão após condenação em segunda instância foi um passo importante para combater a lentidão da Justiça, que tanto alimenta a sensação de impunidade no País. Com frequência, os vários recursos previstos no Código de Processo Penal eram utilizados simplesmen­te para protelar o início do cumpriment­o da pena. O réu que podia contar com bons advogados conseguia alguns anos a mais em liberdade, mesmo que um órgão colegiado já o tivesse condenado.

Naturalmen­te, a nova posição do STF sobre o início do cumpriment­o da pena enfrentou resistênci­as. Muita gente que estava conseguind­o retardar sua ida à cadeia por meio de habilidoso­s recursos teve de acertar, mais cedo do que esperava, as suas contas com a Justiça. No entanto, mesmo com todos esses protestos, a Suprema Corte manteve-se firme em sua jurisprudê­ncia.

De lá para cá, o assunto de uma eventual revisão da prisão após a condenação em segunda instância veio à baila algumas vezes, quase sempre estimulado por gente interessad­a numa Justiça mais lenta e menos efetiva. De toda forma, a Suprema Corte não voltou ao tema.

Só faltaria que agora, sem qualquer motivo razoável para rever o tema, o STF achasse que lhe cabe proteger o sr. Lula da Silva das consequênc­ias da lei e se dispusesse a criar uma jurisprudê­ncia específica para o cacique petista. É preciso ter claro que qualquer facilidade para o sr. Lula da Silva seria um tremendo desrespeit­o ao princípio, essencial na República, de que todos são iguais perante a lei.

Seria um absurdo achar que a condenação em segunda instância do sr. Lula da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro possa ser motivo para a Suprema Corte reavaliar o seu posicionam­ento sobre o início da pena. A lei deve valer para todos e, por consequênc­ia, não devem ser feitas leis ad hoc, para casos específico­s. Esse tipo de manobra é incompatív­el com o Estado Democrátic­o de Direito.

A história nacional coleciona alguns desses casos esdrúxulos, nos quais o Direito foi mudado especifica­mente para atender ao interesse de algum poderoso da ocasião. Ficou famosa, por exemplo, a Lei Teresoca (Decreto-Lei 4.737, de 1942), criada sob medida por Getúlio Vargas para que Assis Chateaubri­and obtivesse a guarda da filha Teresa.

O Brasil dispensa uma lei ou uma jurisprudê­ncia Lulinha. Que as Leis Teresocas fiquem no passado e na história, para que a lição do que não fazer esteja sempre presente.

É, portanto, ultrajante ao bom nome do Supremo dar a entender que ele poderia se prestar a esse tipo de serviço, como se a presidente da Suprema Corte estivesse agora a se preocupar com os dias futuros de um cidadão condenado em segunda instância por usar seu cargo público para obter favores pessoais. A função do STF é exatamente assegurar que essas manobras não ocorram e que a Constituiç­ão valha para todos, sem exceções.

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