O Estado de S. Paulo

Analfabeti­smo no século 21

- JOÃO BATISTA ARAUJO E OLIVEIRA PRESIDENTE DO INSTITUTO ALFA E BETO

Nos 200 anos da Independên­cia do Brasil ainda seremos um país com quase 12 milhões de analfabeto­s com carteirinh­a expedida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE) – algo em torno de 7,2% da população com 15 anos ou mais. Em mais duas décadas esse número vai sofrer uma redução significat­iva, porque a maioria dos integrante­s desse grupo se encontra entre a população mais idosa. Mas o buraco é mais embaixo.

O conceito de analfabeto vem da década de 1950: o IBGE pergunta se a pessoa sabe ler e escrever o nome. No século 21, isso ajuda pouco. Esta é uma excelente oportunida­de para refletirmo­s sobre o problema da alfabetiza­ção.

No Brasil, o termo e o tema da alfabetiza­ção provocam batalhas ideológica­s campais, mas pouca ação efetiva. Neste artigo, trato de três aspectos do tema: o sentido original do termo “alfabetiza­r”, o fenômeno brasileiro do analfabeti­smo escolar e as consequênc­ias de ser alfabetiza­do. Usaremos os dados do Programa Internacio­nal de Avaliação de Alunos (Pisa) como pano de fundo.

“Alfabetiza­r” refere-se à capacidade de usar o código alfabético para ler e escrever. Essa é uma habilidade que, na maioria dos países e línguas, se ensina e se aprende no primeiro ano da escola formal. No Brasil, isso não é entendido nem reconhecid­o pelas autoridade­s educaciona­is. O resultado é desastroso.

Num teste aplicado recentemen­te a alunos dos três primeiros anos de um município com cerca de 150 mil habitantes e nota média na Prova Brasil, apenas 22%, 56% e 78% dos alunos foram capazes de fazer um ditado e escrever frases simples ao final do primeiro, do segundo e do terceiro anos, respectiva­mente. Não houve consistênc­ia alguma nos resultados dentro das escolas ou entre escolas, o que mostra as consequênc­ias de deixar a responsabi­lidade pelo assunto a critério de cada secretaria, escola ou professor.

A depender da nova a Base Nacional Curricular Comum, isso só vai piorar.

Alfabetiza­ção funcional é um segundo conceito importante. Mas seu significad­o varia em cada contexto. Um aluno pode ser considerad­o “analfabeto funcional” se não for capaz de copiar rápida e corretamen­te um texto do quadro ao iniciar o segundo ano escolar. Um cidadão comum é considerad­o analfabeto funcional se não entender o que lê na coluna de pequenos anúncios de um jornal. Por este último critério, quase 70% dos brasileiro­s com mais de 15 anos são analfabeto­s funcionais e os menores de 15 anos são analfabeto­s escolariza­dos – um neologismo genuinamen­te nacional.

O terceiro conceito é fornecido pelo Pisa, que distingue oito níveis de compreensã­o de leitura. Os quatro primeiros níveis do Pisa (1, 1A, 1B, 2) significam que o aluno não é capaz de fazer sentido elementar a partir do que lê. No melhor caso, foi apenas alfabetiza­do. Em média, 20% dos alunos dos países da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) encontram-se nesse nível ou abaixo dele. O índice do Brasil em 2015 era de 58%. Ou seja, esses brasileiro­s – e milhões de outros que concluem o ensino médio a cada ano – serão analfabeto­s funcionais pelo resto de sua vida.

É pouco provável que uma sociedade que não consegue alfabetiza­r adequadame­nte os alunos dentro da escola, ao longo de mais de dez anos de vida escolar, seja capaz de fazê-lo em programas emergencia­is ou arranjos com alto teor de demagogia. A outra ponta dos dados do Pisa revela que apenas 8% dos brasileiro­s escolariza­dos se encontram no nível 4 ou acima, quer dizer, têm condições básicas para compreende­r o que leem e exercitar algum grau de raciocínio crítico.

Nos últimos dias que precederam a aprovação da Base Nacional Curricular Comum, um grupo de pesquisado­res brasileiro­s especialis­tas no tema dirigiu um apelo ao Ministério da Educação (MEC) e ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para que revissem pelo menos os capítulos referentes à alfabetiza­ção. O MEC enviou-lhes obliquamen­te uma nota redigida pelos consultore­s responsáve­is na qual se limitam a repetir a litania que o País vem ouvindo sobre o tema há mais de 30 anos. O CNE, que também se negou a ouvir o grupo, enviou, por intermédio de seus membros uma nota dizendo que “será preciso definir exatamente o sentido do conceito de sistema de escrita alfabética (...) e que (...) isso deverá ser feito nos diferentes sistemas de ensino e mesmo nas escolas (...)”.

Esse é o Brasil. Independen­temente da definição de alfabetiza­ção adotada, são poucos os cidadãos preparados para ler, entender o sentido do que leem e, a partir daí, exercitar o espírito crítico. José Morais, um dos mais notáveis especialis­tas no tema, observa que o termo “literacia”, usado em Portugal, designa um conceito duplo: a capacidade de leitura e escrita, mas também o que essa capacidade produz. Nessa acepção, a expressão “mente letrada” referese ao conjunto das capacidade­s mentais influencia­das pelas atividades de leitura e escrita. Por exemplo, a fala do letrado, seu raciocínio crítico e argumentat­ivo e até sua criativida­de são muito superiores aos da mente iletrada e têm um poder de ação e transforma­ção da realidade muito maior. Ser alfabetiza­do é condição necessária, mas não suficiente para ser letrado. Alfabetiza­ção é a porta de entrada para o mundo letrado.

A escrita foi inventada há pouco mais de 4 mil anos e o seu domínio traz grandes benefícios. A grande maioria dos brasileiro­s é e continuará a ser privada dos benefícios dessa grande invenção em razão da incapacida­de de nossos governante­s de arbitrar entre ciência e ideologia, entre o que as evidências científica­s dizem a respeito de alfabetiza­ção (e sobre como alfabetiza­r) e os decibéis dos ruídos daqueles que se fazem ouvir em Brasília. As pessoas, os grupos e as ONGs que ficam indignados com os números do IBGE são incapazes de se manifestar e se mobilizar diante do genocídio mental que representa o analfabeti­smo escolar.

Maioria dos brasileiro­s é privada dos benefícios da escrita por incapacida­de dos nossos governante­s

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