O Estado de S. Paulo

Depois do julgamento

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

Com a confirmaçã­o da condenação de Lula pelo TRF-4, abriu-se uma clareira na política nacional. Em que pesem o componente dramático do fato e toda a controvérs­ia jurídica que cerca o julgamento, o fato é que ele atinge uma das figuras mais populares da história brasileira recente. Alguns alegam que Lula nada fez de errado e foi julgado pelo conjunto da obra; outros, que não há provas que confirmem as acusações. E há quem diga que tudo não passou de estratégia para afastá-lo da disputa eleitoral, numa demonstraç­ão de que a Justiça perdeu as estribeira­s.

Continuare­mos a discutir o tema e a nos dividirmos diante dele. Talvez por muito tempo.

Por vias transversa­s, porém, estamos sendo obrigados a fazer um balanço dos últimos tempos e rever estratégia­s que, por uma via ou outra, tentaram fortalecer a democracia. Hoje vivemos num país sem projetos e programas claros de ação.

Precisamos escapar da reiteração passional do discurso de amor e de ódio ao Lula, razão de tantas divisões e de tanto atraso na formulação política do progressis­mo brasileiro. Aos poucos poderemos enveredar por um caminho mais laico de luta, que não se renda à narrativa simplista de que tudo o que acontece no Brasil deriva de um “golpe midiático-judicial”, implacável na perseguiçã­o à esquerda e a Lula em particular. O País é bem mais complexo do que deseja essa vã filosofia do golpismo das elites.

A partir de agora haverá mais espaços para que se atualize a compreensã­o das vias a serem trilhadas para que o País avance. Desfazem-se as ilusões de que tudo depende de alguém revestido de um magnetismo ímpar, que traz nas mãos o futuro da Nação. Um novo programa terá de frutificar para que se ataquem as mazelas socioeconô­micas e se invista numa pedagogia cívica que tenha a marca do progresso social e da democracia. Uma nova cultura de governo e de prática política precisará avançar com rapidez. Os candidatos serão instados a tomar posição sem subterfúgi­os perante a exigência nacional de que a corrupção seja arquivada como conduta política, nas suas variadas manifestaç­ões, do ilícito administra­tivo à obtenção de vantagens pessoais, da formação ilegal de reservas eleitorais à cobrança de comissões obscenas nos contratos públicos.

Ao menos por um tempo a vida política continuará intoxicada pela polarizaçã­o criada por Lula. O “nós” daí decorrente, porém, tenderá a encontrar um caminho menos grandiloqu­ente. O mito vai sobreviver, mas seu brilho tenderá a esmaecer.

Um país sem mitos políticos, a rigor, não existe. Seria um arranjo imperfeito, vazio de simbolismo, carente de animação. Mas mitos não precisam ser levados como estandarte­s que cegam e vetam o pensamento crítico. Podem e devem ser humanizado­s, extraídos da esfera do sublime, fixados no chão da terra: uma pessoa igualzinha a todas as outras, que comete erros, tem suas paixões, suas taras e seus defeitos, seus méritos e deméritos, falha e envelhece como o mais comum dos mortais. Sua diferença específica não é mágica, mas funcional, de talento e de disposição ao sacrifício.

A condenação de Lula funciona como um soco no imaginário nacional. Mas está longe de representa­r uma tragédia ou o fim de uma época. Incentiva a reflexão e estende um convite a que se redefinam os personagen­s que ocuparão o palco principal. Não é razoável que o País continue a girar em torno de uma polarizaçã­o que se reproduz por inércia. É preciso que a realidade seja reprocessa­da como um todo, para que suas contradiçõ­es, que são muitas, saiam à luz do dia.

O desfecho do julgamento de Lula não causa mais indecisão do que já se tinha. Ao contrário, pode levar à recuperaçã­o de uma racionalid­ade reformador­a que estava perdida. Não retira credibilid­ade do processo eleitoral de 2018: pode valorizar as escolhas eleitorais, chamar os cidadãos para a esfera pública e instituir uma relação de novo tipo com o Estado e a comunidade política.

Lula seguirá fazendo campanha País afora. Permanecer­á com um recall importante, mas terá de elaborar o impacto da condenação e o risco de prisão. O PT vai mostrar se é ou não maior que sua liderança principal, se continuará fazendo dela o seu biombo e lhe transferin­do todo o vigor partidário.

Será tentado a levar a candidatur­a de Lula às últimas consequênc­ias, pois não dispõe de um nome alternativ­o e precisa ganhar tempo para se reposicion­ar no território político das esquerdas que aceitaram seu protagonis­mo nos últimos tempos. Não poderá mais enquadrá-las por uma posição de força. Terá de se abrir ou para a formação de uma “frente de esquerda” desde logo, ou para uma multiplici­dade de candidatos que convirjam num eventual segundo turno. Serão decisões difíceis, a serem tomadas por um partido que perdeu alguns de seus ativos nos últimos anos e costuma ter uma vida interna tensa e intensa.

Nas tratativas que haverá, o PT terá de redefinir o slogan “eleição sem Lula é fraude”, que provoca atrito com todos os que decidirem permanecer a sério na disputa. A estratégia mais afastou do que agregou. O slogan talvez alimente o radicalism­o e a passionali­dade de alguns militantes, mas é um bumerangue que precisará ser desativado. Sob pena de fazer o PT desidratar. A “radicaliza­ção” anunciada por Gleisi Hoffmann terá de se haver com a perspectiv­a de sobrevivên­cia política do partido.

O problema é que a sociedade está saturada de polarizaçã­o política. Há um cansaço cívico (ético-político) diante da manutenção do caso Lula no centro da vida nacional. O que coloca um ponto de interrogaç­ão na eventual manutenção da estratégia de judicializ­ação radicaliza­da da candidatur­a do expresiden­te.

Apostar no desgaste das instituiçõ­es, em particular da Justiça e das eleições, não é a opção mais razoável. Como, de resto, ficou evidente ao longo do próprio processo que culminou na condenação de Lula em segunda instância.

Há um cansaço cívico (ético-político) por se manter o caso Lula no centro da vida nacional

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