O Estado de S. Paulo

Juventude na África do Sul em preto e branco

Fotos de J.M. Coetzee mostram raízes moldadas pela arte e pelo apartheid

- Jason Farago THE NEW YORK TIMES TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO /

Em 2014, anos depois que se mudou da África do Sul para a Austrália, o romancista J.M. Coetzee finalmente vendeu seu apartament­o na Cidade do Cabo. Logo depois um pesquisado­r vasculhou uma caixa de papelão deixada no imóvel desocupado – e dentro descobriu um grande volume de materiais inéditos deixados pelo taciturno prêmio Nobel de 2003. Mas não eram manuscrito­s. Eram fotografia­s: maços de cópias amareladas e negativos não revelados que retratavam Cenas da Vida na Província, como foram batizados seus três volumes autobiográ­ficos, Infância, Juventude e Verão.

Acontece que, antes da literatura, Coetzee foi um empenhado fotógrafo em sua adolescênc­ia – e suas impressões em preto e branco da família, escola e vida diária na fazenda do tio foram vistas, pela primeira vez, em mostra no Museu Irma Stern, na Cidade do Cabo, J.M. Coetzee: Photograph­s from Boyhood, que acabou em 20 de janeiro.

Coetzee nunca havia mostrado as fotografia­s para ninguém. Ele tinha suas dúvidas, quando a exposição foi sugerida, de que os primeiros experiment­os de um escritor com uma câmera teriam pouca importânci­a. Mas as imagens, feitas em 1955 e 1956, quando o autor tinha 15 e 16 anos, apresentam uma visão crucial sobre a formação de um autor tão contido em suas revelações pessoais como em sua prosa. Mais do que isso, dão uma nova profundida­de à sua ficção, que deve tanto às artes da lente como à da página.

A exposição foi organizada pelo curador Farzanah Badsha e por Hermann Wittenberg, o estudioso que primeiro achou as imagens e forneceu-me reproduçõe­s digitais das primeiras fotos de Coetzee. Quase duas dúzias de fotos da exposição foram impressas na época; outras 58 são recém-reveladas a partir de negativos danificado­s e manchados pelo passar do tempo.

Coetzee nasceu na Cidade do Cabo em 1940. Sua família não era rica, e deve ter sido uma despesa consideráv­el para o jovem John adquirir sua Wega de 35 mm – um clone italiano mais barato da câmera Leica usada por Henri CartierBre­sson e outros fotógrafos da revista Life, que ele admirava.

Logo ele instalou um quarto escuro na casa da família nos subúrbios da Cidade do Cabo. Sua mãe, Vera, era professora; John a amava profundame­nte e a fotografav­a fora de sua casa toda arrumada, adormecida em um sofá ou lendo com seu irmão mais jovem, David.

John sentia-se mais distante de seu pai, Zacharias, como o autor o apresentou em Verão (2009), o terceiro e mais ficcional de seus livros autobiográ­ficos. Ele aparece em apenas uma foto, em que seu filho o capturou em um momento mais dócil.

Se a Cidade do Cabo sufocava o escritor a ser descoberto, ele foi arrebatado pelo Karoo, a árida região do interior da África do Sul, onde seu tio tinha uma fazenda, chamada Voëlfontei­n (ou Fonte dos Pássaros, em africâner). A paisagem teve papel central nas percepções do jovem escritor sobre natureza, família e colonizaçã­o. As fotografia­s de Voëlfontei­n, mesmo nesta idade jovem, exibem a posição ambivalent­e em relação ao campo sul-africano que daria vida à sua ficção posterior. Nessa paisagem ressecada, ele situou dois romances iniciais: No Coração do País (1977), o retrato de uma dona de casa rural assassina, e Vida e Época de Michael K. (1983), a minimalist­a e kafkiana fábula sobre o apartheid.

As imagens mais notáveis nesse arquivo juvenil retratam dois trabalhado­res rurais em Voëlfontei­n, Ros e Freek, que Coetzee descreve em Juventude e Infância. Os trabalhado­res são “homens de cor” – designação da era do apartheid para pessoas de origem mista africana, europeia e asiática.

Um dia, em 1955 ou 1956, os Coetzees foram à praia com Ros e Freek, que jamais haviam visto o mar. Coetzee não menciona essa viagem em Juventude e Infância, mas as numerosas fotos dos homens da fazenda, tiradas em contraste baixo que lembra o recém-renovado mundo de A Infância de Jesus (2013), refletem a importânci­a desse dia.

Em rara entrevista, quando questionad­o sobre as influência­s literárias em No Coração do País, Coetzee respondeu: “Há uma influência mais fundamenta­l, filme e/ou fotografia”. E além da influência subjacente da câmera, as fotografia­s desempenha­ram um papel importante em muitas de suas novelas. Desde a sua estreia, Terras de Sombras (1974), narrado em parte por um pesquisado­r do governo americano que carrega fotos de atrocidade­s da Guerra no Vietnã, até Desonra (1999), sua dissecação brutal da África do Sul pós-apartheid, em que um professor de inglês envergonha­do encontra um retrato depreciati­vo de si mesmo no jornal estudantil. Mais tarde, em Homem Lento (2005), Coetzee fez de seu personagem principal um fotógrafo – desencanta­do ao descobrir que as imagens digitais “poderiam ser sugadas por uma máquina e saírem dela tratadas, não verdadeira­s”.

Em Juventude e Infância e nas autobiogra­fias subsequent­es, Coetzee refere-se a si mesmo apenas pelo pronome ele e puxou uma cortina em torno de si mesmo. No entanto, em seus autorretra­tos fotográfic­os, agora com mais de 60 anos, mostram um distanciam­ento autoral semelhante, misturado com sinceridad­e e até mesmo orgulho.

Vemos o jovem John com um colete de lã, olhos tristes. Ele se inclina para um lado e parece frágil, mas olha para a frente com uma segurança além de seus anos. Em outra foto, posa como um adolescent­e temperamen­tal, dominado por uma melancolia que pode levar à genialidad­e ou ao infortúnio. A sala está escura e o jovem Coetzee ilumina seu rosto de baixo. Olha para cima, em expectativ­a. Logo abaixará a câmera; isso duas décadas antes de publicar um livro.

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FOTOS J.M. COETZEE Cidade do Cabo. Carro da polícia para ao lado de dois pedestres negros no subúrbio
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Garoto. O adolescent­e J.M. Coetzee em um autorretra­to: olhar firme e seguro

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