O Estado de S. Paulo

‘Cidadania’ primitiva

-

Não será com atentados à dignidade de figuras públicas agredidas que o País irá avançar no processo de amadurecim­ento político.

Éesperado que altas autoridade­s da República estejam sob constante julgamento da população. Afinal, dada a relevância dos cargos que ocupam nos Três Poderes, suas ações têm ampla repercussã­o, apontando o destino do País e influencia­ndo a vida de todos os cidadãos, para o bem e para o mal. Para ingressar no serviço público, pois, pressupõe-se que, além de possuir as competênci­as técnicas para o cargo pretendido e as qualificaç­ões de ordem ética, o candidato seja capaz de lidar com as constantes manifestaç­ões críticas da sociedade.

Mas uma enorme distância separa o exercício cívico da crítica – fundamenta­l para impedir que aquelas autoridade­s percam o rumo de suas ações e esqueçam a quem servem – e a absurda escalada das manifestaç­ões de hostilidad­e que extrapolam, e muito, o limite do saudável exercício democrátic­o. Tais rompantes, em geral, ocorrem em lugares públicos onde as autoridade­s se confundem com cidadãos comuns, como aviões, restaurant­es ou mesmo hospitais.

Não raro, elas são alvo de agressões verbais – por sorte, ainda não houve casos de agressão física – feitas sob medida para exposição nas redes sociais. Com a mesma sanha punitiva com que os arautos da moralidade caçam figuras públicas nos locais mais inapropria­dos, oferecem os flagrantes de seus atos de incivilida­de para as “curtidas” de suas redes de relacionam­ento no Twitter, no Facebook e no Instagram.

O mais recente ataque das sentinelas da moral e dos bons costumes envolveu o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Durante um voo entre Brasília (DF) e Cuiabá (MT), no sábado passado, o ministro, um dos alvos preferenci­ais da turba, foi insultado com palavras de baixo calão por um grupo de passageiro­s, que também perguntou, aos gritos, se ele iria “soltar o Lula depois”. O tumulto só foi contido após uma advertênci­a do piloto, que informou aos passageiro­s que acionaria a Polícia Federal.

Em que pese a repercussã­o popular das decisões tomadas por qualquer autoridade, há instrument­os, lugares e modos apropriado­s para contestá-las. E, certamente, a selvageria não se aplica a esses casos.

Episódios de agressão semelhante também acontecera­m com o senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Numa sala de embarque de aeroporto e no desembarqu­e de um avião, o senador foi abordado, aos gritos, com palavras insultuosa­s.

A bem da verdade, o senador petista não é um parlamenta­r conhecido pela temperança. Sua reação à recente condenação do ex-presidente Lula da Silva em segunda instância – que o torna inelegível pela Lei da Ficha Limpa – deu mostras cabais de sua incontinên­cia verbal. Mas responder às barbaridad­es que o senador Lindbergh Farias diz no mesmo tom é dar por superados os limites democrátic­os do debate público e abrir espaço para o exercício da lei dos mais fortes – ou maleducado­s.

Inegavelme­nte, o Brasil vive a plenitude do Estado Democrátic­o de Direito. Isso significa que estão à disposição dos cidadãos os meios apropriado­s para fazer valer os seus direitos, suas vontades e seus anseios. Todos perdemos como sociedade quando tais instrument­os dão lugar à violência verbal que, repita-se, por pouco ainda não se transformo­u em agressão física em espaços públicos.

É compreensí­vel que o longo histórico de desmandos no exercício das funções públicas por agentes do Estado provoque um sentimento de profunda indignação no seio da sociedade, sobretudo em um país desigual e carente dos mais básicos serviços públicos como o Brasil. A população não pode e não deve abrir mão dos instrument­os legítimos de protesto social. Mas a indignação deve ser expressada por meios civilizado­s. O voto e as manifestaç­ões públicas que respeitem a lei, antes de tudo, são meios essencialm­ente democrátic­os e de civilidade.

Não será com atentados à dignidade de figuras públicas agredidas fora de um contexto minimament­e civilizado que o País irá avançar no processo de amadurecim­ento político e institucio­nal.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil