O Estado de S. Paulo

Os limites da defesa de Lula

- ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR DESEMBARGA­DOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM

Desde a Revolução Francesa prevalece na maioria dos países o princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual as decisões judiciais podem conter erros e por isso é importante que sejam revisadas em instância colegiada superior. Ficou assim, desde aquela época, aberta a possibilid­ade de a parte que se sentir prejudicad­a aforar um recurso ao tribunal (um, no singular), que poderá rever a matéria julgada.

Naquele momento fantástico da História da França, sob a inspiração iluminista de Voltaire e Rousseau, o duplo grau de jurisdição fortaleceu o princípio da presunção de inocência, de tal forma que na esfera penal, principalm­ente, ninguém mais poderia ser considerad­o culpado a não ser após a revisão da decisão judicial por uma Corte superior. É nesse duplo grau de jurisdição que se encontra encurralad­o o ex-presidente Lula da Silva, uma vez que já exerceu o direito de se defender em primeiro grau e depois recorreu ao Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), tendo sido novamente condenado (e com aumento da pena).

O que seria o terceiro grau de jurisdição não se presta à reavaliaçã­o da matéria julgada em primeiro e segundo graus, porque os dois tribunais acima – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) – não têm a atribuição de reexaminar questões fáticas, como provas, por exemplo. De fato, essas duas Cortes superiores não são órgãos de reavaliaçã­o do acerto ou desacerto dos julgados dos demais tribunais.

Após a condenação em segundo grau, podem ser aforados recursos ao Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordin­ário ao Supremo Tribunal Federal, que não têm efeito suspensivo, ou seja, eles não impedem nem proíbem o início da execução da condenação. Muito raramente, em casos excepciona­is, as duas Cortes superiores admitem efeito suspensivo em recursos extraordin­ário ou especial para sustar o andamento de condenação decidida nos dois graus de jurisdição.

Matéria estranha aos autos do processo, como pretensões eleitorais frustradas pela condenação atacada, não é susceptíve­l de apreciação, em face do princípio vindo do Direito Romano de que “o que não está nos autos não está no mundo” (quod non est in actis non est in mundo). No caso específico e difícil de Lula, já está esgotado o duplo grau de jurisdição, de tal forma que somente o descumprim­ento de lei federal ou de disposição constituci­onal, se estiver presente de forma inequívoca, poderá levar as duas Cortes superiores a sustar o andamento do processo de condenação.

Sempre é lembrado pelos defensores do ex-presidente o princípio da presunção de inocência, que está inscrito na Constituiç­ão brasileira de 1988, em seu artigo 5.º, LVII: “Ninguém será considerad­o culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatór­ia”. Sobre o assunto, dias atrás, o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), desembarga­dor Manoel de Queiroz Pereira Calças, com sua invulgar cultura jurídica e larga experiênci­a, observou que após condenação em primeiro grau e também no tribunal de segunda instância, que a manteve, o princípio da presunção de inocência foi respeitado e se esgotou.

Tempos atrás o STF entendeu que, mantida por unanimidad­e a sentença condenatór­ia contra a qual o réu apelara em liberdade, não será ilegal o mandado de prisão que o órgão julgador de segundo grau determinar ser expedido contra o réu. Mas isso mudou e vinha prevalecen­do até 5 de outubro de 2016, quando, por maioria de seis votos contra cinco, o Supremo possibilit­ou a prisão do acusado se houver condenação em primeiro grau e esta for mantida por unanimidad­e no tribunal que julgou a apelação.

No início do julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello votou pela concessão de liminar pleiteada pelo Partido Nacional Ecológico e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja finalidade era suspender a execução da pena após condenação em segunda instância.

Mas o ministro Edson Fachin abriu divergênci­a e votou pelo indeferime­nto da cautelar, sob o entendimen­to de que a Constituiç­ão federal não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão que o réu considerar injusta. Seguindo a divergênci­a, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a legitimida­de da execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado, para garantir a efetividad­e do Direito Penal e dos bens jurídicos por ele tutelados. No seu entendimen­to, a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constituci­onais que têm a mesma estatura.

“A Constituiç­ão federal abriga valores contrapost­os, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do Estado”, afirmou. “A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividad­e do sistema penal, instrument­o que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridad­e das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas”.

A presidente do STF, Carmen Lúcia, naquela oportunida­de negou o pedido de cautelar solicitado. Ela relembrou, em seu voto, posicionam­ento proferido em 2010 sobre o mesmo tema, ou seja, que a Constituiç­ão federal, ao estabelece­r que ninguém pode ser considerad­o culpado até o trânsito em julgado, não excluiu a possibilid­ade de ter início a execução da pena – posição na linha de outros julgados do STF.

Mais recentemen­te, Cármen Lúcia deixou claro que não determinar­á a rediscussã­o desse assunto em face de um caso específico – o processo do ex-presidente Lula –, porque isso representa­ria “apequenar” o Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio Mello continuou a esbravejar, porque defende o contrário.

Recursos às Cortes superiores não proíbem nem impedem o início da execução da sentença

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