O Estado de S. Paulo

População relata rotina de guerra no Rio

Moradores da Cidade de Deus e da Rocinha contam como é acordar ao som de rajadas de submetralh­adora e ter casa onde moram sitiada

- Roberta Jansen / RIO

Não poder sair para trabalhar por causa de tiroteios. Passar o dia deitado no chão de casa para não ser atingido. Testemunha­r a execução a sangue frio de vizinhos. Ter a casa completame­nte destruída por granadas e tiros de fuzil. O cotidiano de populações em áreas de guerra não difere muito do que as pessoas vivem em comunidade­s conflagrad­as no Rio.

Cidade de Deus, na zona oeste, e Rocinha, na zona sul, foram as regiões da cidade que mais registrara­m tiroteios neste ano: 41 e 32 confrontos armados, respectiva­mente, pelo menos um por dia. Os números são do aplicativo Onde Tem Tiroteio (OTT-RJ). Os conflitos acontecem basicament­e entre grupos de traficante­s de droga e policiais, que tentam retomar o controle das comunidade­s.

A situação vem se agravando a cada dia, desde o fim do ano passado, com a crise financeira do Estado e o desmantela­mento das Unidades de Polícia Pacificado­ra (UPPs), que durante alguns anos chegaram a garantir um cotidiano menos violento nas comunidade­s. É o que aconteceu na Cidade de Deus, onde a situação se agravou tanto nos últimos dias que a Linha Amarela, uma das principais vias que cortam a cidade e margeiam a favela, chegou a ser fechada por dois dias seguidos por tiroteios.

As cenas de desespero de motoristas paralisado­s na Linha Amarela, se arrastando pelo chão, tentando proteger crianças dos tiros só não são mais chocantes do que as vivenciada­s pelos moradores das comunidade­s diariament­e. “Desde o fim de outubro, a situação é muito grave”, atesta Rafa Gufe, de 32 anos, produtora cultural, integrante do coletivo Hip Hop West Coast-RJ, moradora da localidade do Karatê, que ela compara à Faixa de Gaza, onde ocorre a maior parte dos confrontos entre policiais e traficante­s na comunidade. “Você acorda com helicópter­o da polícia na janela, com rajadas (de submetralh­adora) Z62, com gritos das pessoas pedindo socorro e sendo executadas na frente sem que você possa fazer nada.”

O produtor cultural Bruno Rafael, de 38 anos, simplesmen­te não conseguiu voltar para casa, na quinta-feira, quando foi registrado um dos mais intensos tiroteios na comunidade, onde vivem pelo menos 38 mil pessoas. “Tive de ficar no centro, onde trabalho”, conta. “Não passava nenhum ônibus para a Cidade de Deus.”

Bruno e seu irmão, o professor Leonardo Alves, de 36 anos, mantêm uma escola de Muay Thai na comunidade há quatro anos e meio, que atende 350 pessoas, entre elas quase uma centena de crianças. Com os fortes tiroteios dos últimos dias, a escola simplesmen­te não pôde abrir as portas. “Os pais não deixam as crianças saírem de casa por causa dos tiroteios e o número de alunos só faz diminuir”, conta Alves.

Rocinha. Encravada em parte dos bairros mais ricos do Rio, como São Conrado e Gávea, a Rocinha vem enfrentand­o um cotidiano semelhante. A guerra entre dois grupos de traficante­s rivais se agravou em setembro e, na semana passada, atingiu seu auge, com mais uma invasão violenta da polícia. “Começou 9h30 da quinta-feira e ficou muito intensa depois do meiodia, com a chegada do Bope, ganhando contornos de guerra”, relata um analista de sistemas, morador da comunidade, que não quis se identifica­r e, com medo, se mudou esta semana de casa. “Foram armas de calibre

“Há muitos talentos na minha comunidade, artistas, professore­s, músicos, queria que fôssemos reconhecid­os por isso e não aparecer no noticiário em comparação ao Afeganistã­o.” Bruno Rafael

PRODUTOR CULTURAL

que nunca tinha escutado, muita granada, muita bomba, fuzil. Os traficante­s invadiram o prédio, a polícia invadiu o prédio. Eu e minha esposa passamos o dia inteiro deitados no chão, no escuro, porque estávamos sem luz, torcendo para que o pior não acontecess­e. Quando ela se levantou para comer algo, quase foi alvejada.”

No fim do dia, quando o tiroteio terminou, o cenário era devastador. “Começamos a ouvir vozes de pessoas pedindo socorro. Saí de casa para ver o que estava acontecend­o e já mandei minha esposa fazer a mala para sairmos dali. Quando cheguei na rua, tinham umas três casas pegando fogo, um mar de cápsulas de bala, curto-circuito por todos os lados, corpo e restos de corpos pelos becos.”

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Sem ter para onde ir. Durante confrontos, Rafael não conseguiu transporte para casa

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