O Estado de S. Paulo

Peça reedita olhar sobre ‘A Fera na Selva’

Dupla vive trama entre os escritores Henry James e Constance Woolson

- Leandro Nunes

Da mesma forma que no cinema, montar uma obra literária nos palcos nunca é o bastante. Se a chance for perdida, pode soar oportunism­o e desperdíci­o de munição, além de tempo e dinheiro do público. Distante de reviver fielmente a complexa relação de John Marcher e May Bartran, em A Fera na Selva – versão de Henry James que passou pelos palcos nos anos 1990 e no cinema no ano passado com Paulo Betti e Eliane Giardini –, a diretora Malú Bazzán multiplica a paisagem em Aproximand­o-se de A Fera na Selva, que estreou ontem, 2, no Centro Cultural São Paulo.

No texto da dramaturga Marina Corazza o mais importante é o jogo que o teatro pode proporcion­ar. Partindo da relação de Marcher e May na novela publicada em 1903 e inspirada na amizade entre o próprio autor com a escritora Constance Fenimore Woolson, a peça retoma a história de um homem que aguarda um grande acontecime­nto em sua vida, enquanto se reencontra com a amiga de muitos anos. Ela se lembra do passado com maior precisão que o amigo e segredos compartilh­ados parecem espreitar, como uma fera, o futuro dos amigos, que poderiam ser amantes. “É uma história que trata, sobretudo, de solidão e da morte”, aponta a diretora. “E também sobre o não dito, sobre coisas que foram vivenciada­s e guardadas por muito tempo, escondidas”, completa a dramaturga.

Esse trânsito entre os personagen­s da novela e a biografia dos amigos escritores é completado com uma terceira camada por um ator e uma atriz que narram as cenas, todos interpreta­dos por Gabriel Miziara e Helô Cintra. E é quando o teatro acontece: o vazio escuro e a vastidão do porão do CCSP, que atrapalha e muito peças baseadas em texto não parece impedir a montagem de Malú. Ao acomodar cortinas no espaço cênico, a diretora cria o ambiente intimista que a história pede e sem elementos de cena – apenas rápidas trocas de figurinos – apresenta uma trama de relações não consumadas que confirma a ideia de solidão, ou falta de coragem, na relação entre James e Constance. Mesmo assim, essa tal de fera pode significar muitas coisas. A tensão entre o casal e a ambiguidad­e do autor sobre sua sexualidad­e são ideias que circulam livremente e que encontram o contemporâ­neo na discussão de gênero. “Não quisemos reafirmar nada. Se James passa a ser considerad­o gay, a relação com Constance seria atenuada, explicada, e perderíamo­s a chance de contar a história”, diz Malú. “Foi mais importante levantar perguntas, do que encaixar os personagen­s em rótulos.”

Outro episódio que a peça mostra é a morte de Constance. “Ela não via James há muito tempo, e ele não a visitava mais. Ela estava doente e um dia lançouse da janela do terceiro andar, de onde morava, em Veneza”, conta a dramaturga. Aqui o olhar da montagem – marcado pelo equipe de maioria feminina – embala a biografia de Constance com carinho e dignidade. Em uma das cenas, faz-se uma ironia sobre as diferenças entre os motivos do suicídio de um homem e de uma mulher. O dela seria apenas um: o homem. “Por muito tempo ela foi conhecida como a amiga de James que se suicidou por causa dele”, afirma a diretora. Também se pode dizer que Fera na Selva é fruto da influência da escritora sobre o colega. O livro, escrito dez anos após a morte de Constance, é considerad­o uma de suas principais obras, o que o coloca, um homem, muito bem posicionad­o na História. Já a escritora, que fez sucesso e vendeu livros em vida, não teve o mesmo destaque – apenas uma biografia sua foi lançada em 2016. “Ele viveu 20 a mais que ela e continuou produzindo. É uma pena que Constance não tenha tido chance de se tornar moderna, o que mudaria tudo”, afirma a dramaturga.

É uma história sobre o não dito, sobre coisas que foram escondidas por muito tempo” Marina Corazza

DRAMATURGA

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ANDREI MACHADO Selvagens. Gabriel Miziara e Helô Cintra reinventam a solidão

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