O Estado de S. Paulo

Ausência do pai é prova de fogo entre irmãs

Doença, senilidade e abandono são discutidos em picadeiro colorido, com direito a performanc­es no arame

- / L.N.

Não é tarefa fácil buscar humor em criações, ainda mais nos dias de hoje, contudo é impossível negar que a família sempre foi o berço das melhores comédias e melodramas possíveis. Com o distanciam­ento do passado, recordar episódios familiares que foram tensos ou trágicos é o filtro ideal para seguir adiante. Esse é o espírito da artista aspirante que caminha no arame de Funâmbul@s, espetáculo que estreou ontem, 2, no Centro Cultural São Paulo.

Num cenário que flerta com a palhaçaria e com o circense, três irmãs de uma família não muito unida precisam se reencontra­r para decidir o que fazer com o pai senil. Seu diagnóstic­o não está claro para elas, nem para a plateia, mas a falta de memória do patriarca é o que puxa a trama na peça escrita por Priscila Gontijo. Na última montagem da autora, A Vida Dela, havia uma situação semelhante: dois irmãos tentavam entender como lidar com o terceiro que, portador de esquizofre­nia, tinha parado de tomar os remédios. A situação se agravava já que o pai, no quarto ao lado, não aceitava ser importunad­o por nenhum motivo. “Gosto de escrever sobre essa ausência, mas sempre buscando um graça triste, não uma comédia declarada, e a relação familiar oferece muito sobre o que escrever”, afirma a autora.

Para ela a situação da velhice ganha outra discussão, colocada nesse ambiente. “Tenho muitas amigas que estão cuidando dos pais. Trata-se de uma questão diária, de ser família. No caso das três irmãs da peça, elas são forçadas a essa relação íntima, já que a família se desfez muito cedo. Como é cuidar de alguém que nunca cuidou de você?”, questiona Priscila.

Na encenação de Eric Lenate, um palco cheio de cores assume que o espaço da dor deve ser redecorado. “É uma tentativa de abrir fissuras sobre uma questão muito comum, de como a velhice pode ser marginal.” Para ele, o texto de Priscila conserva-se em alta velocidade. “É instigante por ser uma dramaturgi­a quebradiça, por mudar de estilos até nas mesmas cenas. Ao trocar algumas palavras, ela consegue sair de situações cômicas e ir para o drama. É como se o texto fizesse curvas bem fechadas.”

A peça passa-se na casa da artista circense que caminha o tempo todo no seu arame, como símbolo, talvez, da própria vida. A outra irmã, é dramaturga e partilha sua luta na arte teatral enquanto a mais velha, que aparenteme­nte tem uma vida comum: é casada, tem dois filhos e aos poucos revela as dores particular­es de quem insistiu no modelo familiar. “Elas estão entre a lucidez e o desvario total. Tentando se equilibrar, nessa linha da vida, já que não é possível parar ou mesmo desistir. É preciso seguir em frente, para não cair”, diz o diretor.

O reencontro com o velho pai trata de sacudir ainda mais a segurança das meninas. Por algum motivo, o velho só consegue lembrar-se do passado, que inclui seu carreira de ator. Essa obsessão e o afeto pelo teatro confundem-se com a realidade ao se deparar com três mulheres que podem muito bem ser as três irmãs da peça de Chekhov ou mesmo Karin, Maria e Agnes de Gritos e Sussurros, filme de Ingmar Bergman. Sua memória só se fortalece ao declarar sua admiração por um grande e querido diretor: Antunes Filho.

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ALEX SILVA/ESTADÃO Memória. Sonho e realidade se confundem

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