O Estado de S. Paulo

Para quem imaginava que a condenação de Lula levantaria massas, o pós-julgamento foi decepciona­nte.

- •✽ FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

OPaís vive dias politicame­nte agitados. Mas para quem imaginava que uma segunda condenação de Lula levantaria as massas em protesto, o pósjulgame­nto, independen­temente de se estar ou não de acordo com o veredicto, foi decepciona­nte. Na verdade, a maioria da população continuou imersa no dia a dia. A fagulha que viria dos “movimentos populares” não veio. O que não quer dizer que no transcorre­r do tempo, por outras razões e pelas consequênc­ias da eventual prisão de Lula, o ânimo das pessoas não possa leválas às ruas.

Nada disso muda o panorama: a movimentaç­ão confinase aos meios políticos e jornalísti­cos e ao mercado financeiro. A eventualid­ade de quem estava à frente das preferênci­as ser impedido de concorrer por uma lei que, ironicamen­te, ele próprio sancionou, chamada “da Ficha Limpa”, produz certo alvoroço para saber como se distribuir­ão seus votos. E assim será a cada nova pesquisa eleitoral que apareça. As eleições, entretanto, virão. O calendário não será alterado. Os partidos e candidatos, todos eles, passado o alvoroço, procurarão adaptar-se à realidade.

É cedo para prognóstic­os. Quando deixei o Ministério da Fazenda para ser candidato (em outras circunstân­cias, é verdade), tinha 12% das intenções de voto e Lula, três vezes mais. Em julho, depois de o real virar moeda, a tendência começou a mudar, mas a mudança só se tornou nítida quando teve início o horário eleitoral na TV e no rádio, atraindo parte importante da atenção da maioria das pessoas. Os eleitores olharam os candidatos e optaram por quem lhes pareceu mais capaz de conduzi-los a um futuro melhor. Naquela época a questão central era o controle da inflação. Hoje não há uma, mas várias questões centrais. Além disso, a mídia social, a da internet, abre maiores espaços para todos os candidatos.

Política é circunstân­cia, mas é também esperança, e esta depende de o candidato encarnar uma mensagem consistent­e com o que a maioria do eleitorado sente e deseja. Hoje o tema central não é mais a inflação. O desemprego – e, portanto, o cresciment­o da economia –, o crime e a inseguranç­a das pessoas, bem como a corrupção, que provoca o clamor por decência, são os novos pontos sensíveis.

A vitória eleitoral depende de se construir e saber transmitir uma mensagem que toque a sensibilid­ade popular e dê resposta às principais preocupaçõ­es da maioria da população. O eleitorado avalia a seu modo as possibilid­ades de dias melhores que o candidato lhe oferece. Essa avaliação, a rigor, ainda não se iniciou. A grande maioria das pessoas só começará a fazê-la bem mais à frente.

Na escolha do candidato, a economia conta, mas não os dados puros e duros. Os americanos falam do feel good factor, ou seja, do sentimento de bem-estar. Não basta que os dados mostrem aos especialis­tas que a economia está melhorando, é preciso que as pessoas sintam que a vida melhorou para si e para os mais próximos.

O discurso “técnico” ajuda pouco a obter votos. Dados sem alma são como pedras que rolam dos morros, não formam caminhos. É preciso oferecer bons motivos para que a escolha do eleitorado recaia sobre A e não sobre B. Daí que sejam importante­s a campanha, a mensagem, a capacidade do candidato de ter uma fala coerente com sua trajetória. Antes dos embates reais entre os candidatos, as apostas são arriscadas.

Está na moda, dada a dispersão de preferênci­as de votos, imaginar possível repetir o “fenômeno Macron”. Sim, podem-se despertar esperanças e juntar segmentos de uma sociedade fragmentad­a e desiludida com os políticos. Mas as circunstân­cias aqui são outras.

Na França a eleição presidenci­al é solitária e candidatos independen­tes podem concorrer. As eleições para a Assembleia Nacional se dão um mês depois, o que dá ao presidente vitorioso, mesmo um outsider, enorme chance de “formar a maioria”. No Brasil só podem concorrer candidatos filiados a partidos. As alianças partidária­s para a eleição são importante­s para assegurar tempo de TV e recursos de financiame­nto de campanha. Depois de eleito, porém, o presidente não terá a maioria congressua­l assegurada, dada a fragmentaç­ão do sistema partidário.

Só a partir de abril, quando termina o prazo para a filiação a partidos, pré-requisito para disputar a eleição, poderemos ver se haverá mesmo outsiders. Até as convenções partidária­s, que se devem realizar entre julho e início de agosto, o jogo político se concentrar­á na montagem das alianças partidária­s para a Presidênci­a, os governos estaduais e o Congresso, um quebra-cabeças em três camadas que se afetam reciprocam­ente. Por mais importante que seja montá-lo, quem queira vencer a eleição presidenci­al não se pode descuidar da construção da sua narrativa, desde já.

A dispersão do eleitorado mostra que entre nós os “partidos” não são condutores do voto, com as exceções conhecidas. Os líderes contam mais do que eles. Essa é uma das fragilidad­es da nossa democracia. Com a desmoraliz­ação da “classe política”, se houver alguém capaz de comover as massas e de significar para elas um futuro melhor, pode ganhar. Nesse caso, como governará? Com quem e a que custo?

Desmoraliz­ados ou não, fragmentad­os ou não, mesmo em crise, como estão, os partidos são instrument­os básicos nas democracia­s representa­tivas. Sua substituiç­ão pela mensagem do líder é possível, mas, em geral, as consequênc­ias são negativas. Melhor tratar de reinventar os partidos e abrir espaços para que as pessoas opinem e participem das decisões do que imaginar que “alguém” salvará a Pátria. A Pátria precisa tanto de líderes como de instituiçõ­es. E, principalm­ente, de um eleitorado que leve ao poder quem tenha visão de País e do mundo e, sustentand­o os valores da decência e da democracia, possa oferecer maior bem-estar ao povo.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

A Pátria precisa de um eleitorado que leve ao poder quem tenha visão de País e do mundo

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