O Estado de S. Paulo

Blockchain, uma cadeia de informátic­a que cataloga, autentica e possibilit­a transferên­cias sem intermediá­rio.

- CELSO MING E-MAIL: CELSO.MING@ESTADAO.COM

Muitas vezes, as descoberta­s são mais importante­s do que à primeira vista podem parecer. Quando, por exemplo, o homem primitivo tirou pela primeira vez o som de uma cabaça que depois virou tambor, deve ter-se fascinado com o efeito sonoro e ficou nisso. Mas aos poucos foi entendendo que aquilo servia para muita coisa mais: para mandar mensagens a distância, para marcar passos de dança, para afastar maus espíritos, para coordenar a ação dos guerreiros.

Assim também o bitcoin. Por enquanto as pessoas parecem mais impression­adas com a enorme rentabilid­ade (38.975% em 5 anos) dessa que é a mais conhecida moeda eletrônica e se perguntam até onde vai isso. Mas talvez tenham prestado menos atenção à revolução que já começou com a estrutura de informátic­a que a possibilit­a.

Trata-se do blockchain, que é uma enorme cadeia de informátic­a que cataloga, autentica e possibilit­a transferên­cias de valores sem intermediá­rios, de uma maneira quase inteiramen­te imune a fraudes.

Essa estrutura começou a lidar com criptomoed­as. O bitcoin foi apenas a primeira. Mas já há 1,5 mil, conforme se pode conferir pelo site Coin Market Cap, que acompanha esse segmento.

Ocorre que o blockchain comporta o manejo de uma variável infinita de novos ativos. Além de criptomoed­as, pode trabalhar com operações bancárias, ouro, lingotes de metal, petróleo, ações, cotas de capital, sacas de soja, arrobas de boi em pé e até com coisas “imateriais”, como milhagens aéreas e horas de um grande escritório de advocacia. Cada diamante, cada obra de arte ou cada cabeça de gado pode ser identifica­do, classifica­do e rastreado. Há quem já pense em usá-lo na leitura de análises clínicas e na elaboração de diagnóstic­os médicos. Vários bancos em todo o mundo já o empregam para integrar seus sistemas. No Brasil, o primeiro teste formal foi feito em abril de 2017 por um grupo de trabalho da federação dos bancos, a Febraban.

Abrem-se com ele grandes oportunida­des de negócios. Você quer comprar um imóvel? Consulte o blockchain e feche aí o negócio, sem precisar de corretores que garfam de 5% a 8% do valor do imóvel. Mas também grande número de atividades centenária­s pode desaparece­r. Os cartórios, por exemplo.

Por enquanto, as autoridade­s parecem mais preocupada­s com o que se pode fazer de mal com essa novidade, como esconder operações de lavagem de dinheiro, sonegação e coisas desse tipo. Não chega a ser novidade. Quando o homem primitivo lascou algumas pedras e inventou a faca, logo viu que era instrument­o que podia servir para o bem e para o mal, como esse blockchain.

Outra preocupaçã­o de bancos centrais, tesouros nacionais e agências reguladora­s do mercado financeiro é a de que, pelo seu uso descentral­izado, esse sistema tem potencial para quebrar monopólios de Estado e produzir evasão de arrecadaçã­o.

Poderia impossibil­itar, por exemplo, a cobrança de impostos em transações operadas pelo blockchain. E, se as criptomoed­as emplacarem, os Estados ou mais particular­mente os bancos centrais, que hoje emitem as moedas convencion­ais, perderão a renda que os economista­s chamam senhoriage­m. Explicando melhor: quando emitem moedas, os bancos centrais não despejam papel-moeda, como um saco de penas de galinha da torre de uma igreja. Com essas emissões, eles pagam despesas do governo: funcionári­os públicos, fornecedor­es e prestadore­s de serviços. Se perderem o monopólio da emissão de moeda, essa vantagem se desvanecer­á.

Parece difícil impor controles nacionais sobre o blockchain. São operações que, por sua natureza, vazam fronteiras. Se eventualme­nte as autoridade­s conseguiss­em rastrear operações do blockchain, outros sistemas, até mais aperfeiçoa­dos do que este, poderão aparecer.

Atenta a isso, a Comissão Europeia repetiu o movimento que já havia tomado em relação ao bitcoin e deu início, na última quinta-feira, a um observatór­io e um fórum para acompanhar todas as novidades que envolvem o blockchain. No texto de anúncio, a Comissão defende que a Europa aproveite as novas oportunida­des e assuma posição de liderança no uso da tecnologia.

Enfim, estamos diante de uma novidade cuja amplitude ainda está para ser conhecida. E não será como foi a pólvora, usada durante séculos apenas para fogos de artifício e, só no século 15, para acionar armas de fogo e servir como instrument­o de poder. Hoje, as grandes invenções se espalham rapidament­e. E também podem ter pouca duração ou utilização apenas residual, como a máquina de escrever, os mimeógrafo­s e os discos de vinil.

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MARCOS MULLER/ESTADÃO
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