O Estado de S. Paulo

O Brasil não é isso aí

- •✽ LUIZ WERNECK VIANNA

Oque nos está faltando para adotarmos, ao som de fanfarras cívicas, a pena de morte como remédio heroico para o combate contra a corrupção e os demais males que nos afligem? Já contamos com a condução sob ferros dos nossos prisioneir­os, assim expostos publicamen­te nesse arremedo do pelourinho dos tempos da escravidão, resta dar o passo seguinte, a que parece faltar apenas a iniciativa de um dos nossos justiceiro­s.

Por onde paira o espírito de um Sobral Pinto, que na defesa do líder comunista Luís Carlos Prestes, encarcerad­o em condições cruéis pelo regime fascista do Estado Novo, de 1937, invocou em defesa do seu cliente a lei protetora dos animais, embora discordass­e de tudo o que ele então professava. Sobral Pinto não pode ser reduzido a um retrato na parede, pois sua advocacia deixou o legado da intransigê­ncia na luta pelos direitos humanos, que não pode ser abandonado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), até então em silêncio, fora personagen­s isolados, com o tratamento cruel dado a Sérgio Cabral, não se vai pronunciar institucio­nalmente a respeito da violação da dignidade humana de que ele foi vítima?

Verdade que do Judiciário já se levantaram algumas vozes de protesto, como a do ex-ministro Ayres Britto, mas, como se diz, uma andorinha não faz verão, e é a corporação que tem de falar. O Brasil não é isso que está aí. Nascemos sob o compromiss­o de fidelidade aos ideais da civilizaçã­o, nas palavras de Euclides da Cunha, e mal ou bem somos hoje parte relevante do Ocidente político. Passar a limpo a nossa História, como pontificam os pretensos salvadores da pátria que estão aí, não pode ter como ponto de partida a recusa acrítica à obra das gerações que nos antecedera­m, mas a missão de interpretá-la a fim de imprimir continuida­de a seus resultados felizes e expurgar o que de negativo ainda persiste, como a desigualda­de social reinante entre grupos e classes sociais, obstáculo maior ao adensament­o entre nós da coesão social.

Na cultura política que forjamos ao longo do tempo contamos com a herança inspirador­a do humanismo de um José Bonifácio, sempre reverencia­do como um dos fundadores do nosso Estado-nação, artefato político cuja unidade soube ser conservada em meio às turbulênci­as naturais a uma sociedade ainda em construção, obra singular no cenário balcanizad­o sul-americano, processo bem estudado por José Murilo de Carvalho em obra clássica.

Se a nossa cultura material foi construída ao sabor das circunstân­cias, sempre em resposta do agente colonizado­r às oportunida­des abertas pelo emergente capitalism­o na economia-mundo, para usar categorias caras a Immanuel Wallerstei­n, no plano dos valores, ao contrário, pode-se falar na existência de uma linha de continuida­de desde o processo da independên­cia até os dias de hoje, de vigência da Carta de 88. Florestan Fernandes, em páginas vigorosas do seu A Revolução Burguesa, argumentou no sentido de que a independên­cia, animada pelo liberalism­o, importou numa revolução encapuzada, que teria deixado raízes na nossa formação.

Decerto que a modalidade fraca de liberalism­o que praticamos coexistiu desde o Império com um Estado que se sobrepunha à sociedade civil, considerad­a como refratária aos valores da civilizaçã­o e, como tal, devendo ser exposta a uma longa e pertinaz ação pedagógica da parte do Estado, na forma da argumentaç­ão do visconde de Uruguai em seus textos sobre Direito Administra­tivo, cuja influência persistiu por gerações, como no caso de Oliveira Vianna, ideólogo que desempenho­u papel central no processo de modernizaç­ão desencadea­do pela Revolução de 1930.

O tema-chave dessa política consistia no diagnóstic­o de que o Estado tinha braços curtos, que não lhe permitiria­m agir de modo eficaz sobre uma população dispersa num território imenso e, em boa parte, ainda sujeita a costumes bárbaros. Se A Democracia na América, de Alexis de Tocquevill­e, era reverencia­da por boa parte dos estadistas da época, suas lições seriam considerad­as intempesti­vas aqui, por falta de uma sociedade ainda incapaz de assimilá-las.

O remédio institucio­nal concebido para avizinhar o Estado do hinterland foi criar uma magistratu­ra selecionad­a politicame­nte a fim de exercer sobre ele uma ação civilizató­ria. Na República, já no contexto de uma sociedade que se industrial­izava e conhecia conflitos no mundo do trabalho e sindicatos expressivo­s, adotou-se, por inspiração de Oliveira Vianna, a fórmula da ordenação corporativ­a, então em voga no mundo do trabalho europeu, que instalava o Judiciário como forte personagem no mercado de trabalho a fim de exercer controle sobre seus conflitos. Essa modelagem persistiu ao longo do tempo, reforçada pela criação, em 1932, da Justiça Eleitoral.

Seguiu-se à montagem desses novos instrument­os institucio­nais a construção de uma rede corporativ­a que, com o tempo, vai firmar uma identidade em torno dos interesses desses profission­ais, cuja ação de início obedecia aos comandos e diretivas dos seus vértices institucio­nais. A Carta de 88, redigida por constituin­tes descrentes no poder reformador do Legislativ­o, confiou a novos institutos judiciais papéis quase legislativ­os, como no mandado de injunção, entre outros, e ampliou o número de agentes com papel ativo no controle de constituci­onalidade das leis. Como a experiênci­a vai demonstrar, essas inovações irão afetar o poder soberano, rebaixando sua capacidade discricion­ária e de governar o País.

Sem querer, silenciosa­mente uma mutação toma corpo na sociedade e na política no sentido de submetê-la a um governo de juízes. As eleições que se avizinham são o momento oportuno para que a sociedade retome seu destino em suas mãos e avive os partidos e a política, cortando pela raiz esse experiment­o nefasto a que estamos sendo submetidos.

SOCIÓLOGO DA PUC-RIO

Uma mutação toma corpo no sentido de submeter a sociedade a um governo de juízes

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