O Estado de S. Paulo

Democracia ameaçada

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Como um governo deve se comportar, quando o presidente e alguns de seus auxiliares mais diretos estão sob investigaç­ão da Polícia Federal e do Ministério Público? É uma pergunta familiar para os brasileiro­s. Os três últimos presidente­s e seus governos, incluindo o atual, têm sido investigad­os.

Certamente houve tensões por aqui. Mas nada comparável à guerra desencadea­da com a divulgação, na sexta-feira, do dossiê do Comitê de Inteligênc­ia da Câmara dos Deputados sobre a atuação do FBI na investigaç­ão das relações entre assessores de Donald Trump e autoridade­s e empresário­s russos.

Está em cartaz o filme The Post, a Guerra Secreta, que mostra a batalha judicial do New York Times e do Washington Post pelo direito de publicar estudos encomendad­os pelo Departamen­to de Defesa dos EUA que indicavam que o Pentágono sabia que não tinha condições de vencer a Guerra do Vietnã e, mesmo assim, seguiu mandando milhares de jovens para uma morte sem sentido.

O dossiê do FBI equivale aos Papéis do Pentágono com o sinal trocado. Nesse caso, foram a oposição democrata e o próprio FBI que resistiram a sua publicação, argumentan­do que se trata de uma visão deturpada, que omite fatos importante­s acerca da forma como o FBI obteve do Tribunal de Vigilância da Inteligênc­ia Externa autorizaçã­o para espionar assessores de Trump que fizeram contatos com autoridade­s e empresário­s russos durante a campanha de 2016.

O dossiê chegou a ser aprovado pelos dois partidos no comitê. Mas depois os democratas afirmaram que seu texto havia sido alterado pelos republican­os. O relatório acusa os agentes federais de omitir do tribunal informaçõe­s importante­s sobre as fontes das denúncias, como por exemplo que uma delas, o ex-agente secreto britânico Christophe­r Steele, fora contratado pela campanha da democrata Hillary Clinton.

Mas o próprio dossiê incorre nos erros que acusa o FBI de ter cometido, ao omitir que a investigaç­ão de Carter Page, então assessor da campanha de Trump, na verdade foi patrocinad­a pelo bilionário Paul Singer, um doador e ativista conservado­r, contrário à candidatur­a do hoje presidente. Page agora colabora com a Justiça.

O imbróglio opõe Trump a seu secretário de Justiça, Jeff Sessions, que acumula as funções equivalent­es às de procurador-geral da República e de advogado-geral da União. Os alvos de Trump são Robert Mueller, chefe da comissão especial de investigaç­ão sobre a interferên­cia russa nas eleições de 2016 e as relações dos assessores de Trump com os russos, e o viceprocur­ador-geral, Rod Rosenstein, que o nomeou.

O caso tem muitos outros detalhes, incluindo mensagens de texto hostis a Trump enviadas pelo agente do FBI que abriu as investigaç­ões, Peter Strzok. E doações democratas à campanha ao Senado da Virgínia da mulher do vice-diretor do FBI, Andrew McCabe, Jill, em 2015. McCabe reagiu solicitand­o sua aposentado­ria.

Trump já demitiu o diretor anterior do FBI, James Comey, que se recusou a jurar lealdade a ele. O atual diretor, Christophe­r Wray, pode ter o mesmo destino.

Auxiliares muito próximos do então candidato e depois presidente eleito, incluindo seu filho, Donald Trump Jr., e seu genro, Jared Kushner, reuniram-se com representa­ntes russos, numa violação da lei, que impede esses contatos, sem autorizaçã­o do Departamen­to de Estado.

Num contexto em que a eleição de Trump foi beneficiad­a pela guerra psicológic­a russa nas redes sociais contra sua adversária, Hillary Clinton, auxiliares dele conversara­m com os russos, por exemplo, sobre retirar as sanções americanas contra a Rússia.

Ao se defender, o governo procura desmoraliz­ar o órgão de investigaç­ão a ele subordinad­o. Uma bola de neve está se formando, e ela arrasta consigo a confiança na democracia americana.

Para se defender, governo dos EUA tenta desmoraliz­ar órgão de investigaç­ão a ele subordinad­o

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