‘Estamos mais vulneráveis do que estávamos em 2008’
Para ex-presidente do BCE, é ‘inquietante’ ver o endividamento da economia global seguir no mesmo ritmo pré-crise
Em 2017, a economia da zona do euro, o grupo de 19 países da União Europeia que adota a moeda única, registrou seu melhor desempenho em dez anos, com avanço de 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB). O desempenho só não foi melhor do que o de 2007, quando a evolução havia alcançado 3%. Não por coincidência, aquele ano havia sido o anterior à falência do banco americano Lehman Brothers, o marco “oficial” da crise financeira internacional que abalaria a economia global.
Para Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE) entre 2003 e 2011, porém, nem todas as lições desse período foram aprendidas. “Vejo o endividamento da economia internacional continuar no pós-crise no mesmo ritmo pré-crise. Isso é inquietante”, diz.
A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estado:
• A União Europeia chegou a seu melhor desempenho em dez anos em 2017. Foi uma década perdida?
Nós vivemos não só o impacto da crise financeira, que foi extremamente grave, mas também uma crise de riscos soberanos. Essa crise indicou em certo momento que os investidores e poupadores do resto do mundo, mesmo os europeus, não tinham mais confiança em cinco países. Esses cinco países representavam cerca de 37% do PIB da zona do euro. Nos encontramos com um problema que os EUA não tiveram, e nenhum outro teve, que foi enfrentar a desconfiança sobre o equivalente a 37% de nosso PIB. Os países fizeram grandes esforços e saímos dessa. Hoje a zona do euro cresce claramente mais rápido que os EUA. Em 2016, nós crescemos 1,8% e os Estados Unidos, 1,5%. Quem sabe disso? Em 2017, nós fizemos 2,5% e os EUA, 2,3%. Todo mundo sempre diz que a Europa vai mal e que os EUA são superstars. Eu fico chocado, porque a comunidade internacional aceita o otimismo dos americanos e o pessimismo dos europeus.
• E qual é a explicação para esse crescimento?
O trabalho foi feito: as reformas estruturais foram realizadas na quase totalidade dos países europeus, a começar pelos que estavam em grandes dificuldades. Estamos na recompensa dos esforços que foram feitos durante a crise. Hoje não apenas crescemos mais rápido que os EUA, mas temos um excedente na balança de pagamentos correntes de 3,5% do PIB. Os americanos estão em déficit de 2,5%. Nosso crescimento é são. Hoje, a zona do euro está longe de apresentar o aspecto negativo que apresentou por anos.
• E em termos globais, temos riscos?
Sim, eu preciso dizer que estou muito inquieto. Eu vejo o endividamento da economia internacional continuar no pós-crise no mesmo ritmo pré-crise. Isso é muito inquietante. Há um índice de fragilidade da economia mundial que eu considero muito importante: o montante global de dívidas públicas e privadas em relação ao PIB mundial. Essa proporção no ano 2000 era de 250%. Tínhamos um endividamento mundial equivalente a 2,5 vezes o PIB mundial. Em 2007-2008, estávamos em 275%, com uma elevação de 25%. E, se observo o que tínhamos em 2016, vejo 300%. Veja que o crescimento segue o ritmo de endividamento suplementar. De uma certa forma, em termos globais, estamos em uma situação mais vulnerável do que estávamos em 2008.
• Por culpa de quem?
É o funcionamento da economia mundial e, logo, a culpa é de todo mundo. Todo mundo se deixa envolver por crescimentos de dívida que são anormais e perigosos. Mas a proporção em 2017 era de 50% para países avançados, e 50% para países emergentes. Antes, em 2008, era de 90% para países avançados e 10% para países emergentes. O que aconteceu é que países avançados continuaram se endividando, o que não é normal depois de enfrentarem a crise mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. Já os países emergentes descobriram a alegria do endividamento, e passaram de 10% a 50%.
• Vivemos uma onda de protecionismo e de nacionalismo, exemplificada por fenômenos eleitorais como o Brexit, no Reino Unido, e Trump, nos Estados Unidos. Esses fenômenos não estão de alguma forma ligados à gestão da crise?
Creio que algumas transformações políticas em países avançados têm relações com a crise, que foi considerável. Nossos cidadãos sentiram que o sistema perdeu o controle e que seus governantes não tinham o controle da crise, cuja amplitude era maior. Vemos em um grande número de países avançados os fenômenos do populismo, do nacionalismo, do protecionismo – e Trump e o Brexit são os exemplos mais surpreendentes. Eu diria que os países europeus demonstraram estar muito mais determinados do que imaginávamos a enfrentar essa onda. Mas tive de explicar a amigos americanos que era absolutamente impossível que o populismo vencesse na França, assim como na Alemanha, na Holanda e, amanhã, na Itália. Por outro lado, o fenômeno está aí, e não pode ser menosprezado. É preciso levá-lo a sério.
• O sr. acompanha a situação da economia do Brasil?
Não de perto o suficiente. Mas acompanho o que Le Monde eo Financial Times dizem sobre o Brasil, digamos.
• O sr. compreende o que se passou com o Brasil, que esteve em ótima forma e afundou no curso de poucos anos?
Não, tenho muita, muita dificuldade de compreender exatamente o que pode ter acontecido. Eu tinha, e continuo a ter, uma grande confiança na capacidade que o Brasil tem de se levantar. O Brasil é um país que eu vi passar por um desenvolvimento muito importante. A transformação de São Paulo é muito impressionante. Além disso, é um país que avançou muito no funcionamento de sua democracia, de sua Justiça, da independência da autoridade judiciária. Me parece que a democracia parece muito bem instalada no país. Não há ameaça de golpe de Estado militar ou algo assim. Isso significa que o país fez progressos consideráveis. Mas por que o país não se estabiliza melhor, levando-se em conta os recursos extraordinários de que dispõe? É uma questão.
• O senhor tem um amigo, eu diria, nas rédeas da economia brasileira, que é o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Vocês estão em contato?
Não com a frequência que gostaria. Mas é um homem impressionante. Não apenas ele… Há um exército de brasileiros que são extremamente competentes, ótimos profissionais. Me digo que, com o espírito empreendedor do Brasil, que se vê de forma extraordinária em São Paulo, confio nas perspectivas de médio e longo prazo do País.