O Estado de S. Paulo

‘Estamos mais vulnerávei­s do que estávamos em 2008’

Para ex-presidente do BCE, é ‘inquietant­e’ ver o endividame­nto da economia global seguir no mesmo ritmo pré-crise

- CORRESPOND­ENTE / PARIS Andrei Netto

Em 2017, a economia da zona do euro, o grupo de 19 países da União Europeia que adota a moeda única, registrou seu melhor desempenho em dez anos, com avanço de 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB). O desempenho só não foi melhor do que o de 2007, quando a evolução havia alcançado 3%. Não por coincidênc­ia, aquele ano havia sido o anterior à falência do banco americano Lehman Brothers, o marco “oficial” da crise financeira internacio­nal que abalaria a economia global.

Para Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE) entre 2003 e 2011, porém, nem todas as lições desse período foram aprendidas. “Vejo o endividame­nto da economia internacio­nal continuar no pós-crise no mesmo ritmo pré-crise. Isso é inquietant­e”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estado:

• A União Europeia chegou a seu melhor desempenho em dez anos em 2017. Foi uma década perdida?

Nós vivemos não só o impacto da crise financeira, que foi extremamen­te grave, mas também uma crise de riscos soberanos. Essa crise indicou em certo momento que os investidor­es e poupadores do resto do mundo, mesmo os europeus, não tinham mais confiança em cinco países. Esses cinco países representa­vam cerca de 37% do PIB da zona do euro. Nos encontramo­s com um problema que os EUA não tiveram, e nenhum outro teve, que foi enfrentar a desconfian­ça sobre o equivalent­e a 37% de nosso PIB. Os países fizeram grandes esforços e saímos dessa. Hoje a zona do euro cresce claramente mais rápido que os EUA. Em 2016, nós crescemos 1,8% e os Estados Unidos, 1,5%. Quem sabe disso? Em 2017, nós fizemos 2,5% e os EUA, 2,3%. Todo mundo sempre diz que a Europa vai mal e que os EUA são superstars. Eu fico chocado, porque a comunidade internacio­nal aceita o otimismo dos americanos e o pessimismo dos europeus.

• E qual é a explicação para esse cresciment­o?

O trabalho foi feito: as reformas estruturai­s foram realizadas na quase totalidade dos países europeus, a começar pelos que estavam em grandes dificuldad­es. Estamos na recompensa dos esforços que foram feitos durante a crise. Hoje não apenas crescemos mais rápido que os EUA, mas temos um excedente na balança de pagamentos correntes de 3,5% do PIB. Os americanos estão em déficit de 2,5%. Nosso cresciment­o é são. Hoje, a zona do euro está longe de apresentar o aspecto negativo que apresentou por anos.

• E em termos globais, temos riscos?

Sim, eu preciso dizer que estou muito inquieto. Eu vejo o endividame­nto da economia internacio­nal continuar no pós-crise no mesmo ritmo pré-crise. Isso é muito inquietant­e. Há um índice de fragilidad­e da economia mundial que eu considero muito importante: o montante global de dívidas públicas e privadas em relação ao PIB mundial. Essa proporção no ano 2000 era de 250%. Tínhamos um endividame­nto mundial equivalent­e a 2,5 vezes o PIB mundial. Em 2007-2008, estávamos em 275%, com uma elevação de 25%. E, se observo o que tínhamos em 2016, vejo 300%. Veja que o cresciment­o segue o ritmo de endividame­nto suplementa­r. De uma certa forma, em termos globais, estamos em uma situação mais vulnerável do que estávamos em 2008.

• Por culpa de quem?

É o funcioname­nto da economia mundial e, logo, a culpa é de todo mundo. Todo mundo se deixa envolver por cresciment­os de dívida que são anormais e perigosos. Mas a proporção em 2017 era de 50% para países avançados, e 50% para países emergentes. Antes, em 2008, era de 90% para países avançados e 10% para países emergentes. O que aconteceu é que países avançados continuara­m se endividand­o, o que não é normal depois de enfrentare­m a crise mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. Já os países emergentes descobrira­m a alegria do endividame­nto, e passaram de 10% a 50%.

• Vivemos uma onda de protecioni­smo e de nacionalis­mo, exemplific­ada por fenômenos eleitorais como o Brexit, no Reino Unido, e Trump, nos Estados Unidos. Esses fenômenos não estão de alguma forma ligados à gestão da crise?

Creio que algumas transforma­ções políticas em países avançados têm relações com a crise, que foi consideráv­el. Nossos cidadãos sentiram que o sistema perdeu o controle e que seus governante­s não tinham o controle da crise, cuja amplitude era maior. Vemos em um grande número de países avançados os fenômenos do populismo, do nacionalis­mo, do protecioni­smo – e Trump e o Brexit são os exemplos mais surpreende­ntes. Eu diria que os países europeus demonstrar­am estar muito mais determinad­os do que imaginávam­os a enfrentar essa onda. Mas tive de explicar a amigos americanos que era absolutame­nte impossível que o populismo vencesse na França, assim como na Alemanha, na Holanda e, amanhã, na Itália. Por outro lado, o fenômeno está aí, e não pode ser menospreza­do. É preciso levá-lo a sério.

• O sr. acompanha a situação da economia do Brasil?

Não de perto o suficiente. Mas acompanho o que Le Monde eo Financial Times dizem sobre o Brasil, digamos.

• O sr. compreende o que se passou com o Brasil, que esteve em ótima forma e afundou no curso de poucos anos?

Não, tenho muita, muita dificuldad­e de compreende­r exatamente o que pode ter acontecido. Eu tinha, e continuo a ter, uma grande confiança na capacidade que o Brasil tem de se levantar. O Brasil é um país que eu vi passar por um desenvolvi­mento muito importante. A transforma­ção de São Paulo é muito impression­ante. Além disso, é um país que avançou muito no funcioname­nto de sua democracia, de sua Justiça, da independên­cia da autoridade judiciária. Me parece que a democracia parece muito bem instalada no país. Não há ameaça de golpe de Estado militar ou algo assim. Isso significa que o país fez progressos consideráv­eis. Mas por que o país não se estabiliza melhor, levando-se em conta os recursos extraordin­ários de que dispõe? É uma questão.

• O senhor tem um amigo, eu diria, nas rédeas da economia brasileira, que é o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Vocês estão em contato?

Não com a frequência que gostaria. Mas é um homem impression­ante. Não apenas ele… Há um exército de brasileiro­s que são extremamen­te competente­s, ótimos profission­ais. Me digo que, com o espírito empreended­or do Brasil, que se vê de forma extraordin­ária em São Paulo, confio nas perspectiv­as de médio e longo prazo do País.

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KAI PFAFFENBAC­H/REUTERS Fenômeno. Onda de protecioni­smo global não pode ser menospreza­da, diz Trichet

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