O Estado de S. Paulo

Artista ganha primeira mostra de vulto nos EUA quase 100 anos depois de surgir no Brasil.

O universo sugerido por Tarsila do Amaral seria não só realizável como orientador do pensamento moderno, como atesta uma grande mostra no MoMA de Nova York

- Tonica Chagas

Tarsila do Amaral começou a forjar sua arte moderna quando, em 1923, vivia em Paris novamente, então na companhia de seu segundo marido, o escritor Oswald de Andrade. Ocupando o estúdio que teria sido de Paul Cèzanne, na Rua Hegesippe Moreau, ela servia caipirinha ao receber luminares como o compositor Erik Satie, o escritor e diretor de cinema Jean Cocteau, e o escultor Constantin Brancusi.

Convivendo com Matisse, Picasso, Georges Braque, Robert Delaunay e Andre Derain, que buscavam romper com a tradição da arte europeia, a artista brasileira também encontrou seu rumo para a arte de vanguarda na simplicida­de primitiva que sobrevivia ao colonialis­mo europeu. Em carta aos seus pais escrita em 19 de abril de 1923 ela dizia: “Sinto-me cada vez mais brasileira, quero ser a pintora do meu país”.

“O distanciam­ento oceânico, a viagem contrária à do descobrime­nto é um processo de redescobri­mento da América que quase todos os intelectua­is americanos têm experiment­ado. Tarsila descobriu o Brasil e também a negritude na França”, diz Oramas. A Negra, que foi pintada em Paris, é o começo de tudo na arte moderna de Tarsila. Segundo depoimento da própria artista, a imagem vem de histórias contadas na sua infância pelas mucamas das fazendas de café da família dela: como não podiam parar de trabalhar, as escravas amarravam pedras nos seios para alongá-los e jogálos sobre os ombros a fim de amamentar os filhos que carregavam nas costas.

Em 1924, levados pela ideia de um Brasil desconheci­do, Tarsila e alguns amigos embarcaram numa viagem como a que fazem os estrangeir­os chegando a um país pela primeira vez. Depois de visitar o Rio de Janeiro para conhecer o carnaval e passar por cidades antigas no sudeste de Minas Gerais, onde confrontou-se com a história do Brasil colonialis­ta, ela começou a ver seu País com novos olhos.

Quinze anos depois, a pintora escreveu sobre o que aquela incursão lhe provocou: “Em Minas, encontrei as cores que amava quando criança. Mais tarde, me ensinaram que eram feias e caipiras. Segui o tom do gosto refinado... Mas depois me vinguei daquela opressão, transferin­do-as para as minhas telas”. De volta daquela viagem, trabalhand­o temas como o da aquarela Paisagem com Vagão de Trem e do óleo sobre tela Carnaval em

Madureira, ambos de 1924, Tarsila abandona o padrão modernista europeu e acrescenta na sua pintura os rosas e turquesas das casas do interior do Brasil, a escultura barroca das cidades coloniais e motivos religiosos trazidos de fontes populares.

Entre 1928 e 1929, Tarsila se concentrou em temas individuai­s, com contornos pesados e formas repetidas como os de Abaporu e Antropofag­ia, as duas pinturas que completam o núcleo da exposição.

Abaporu, que a pintora via como um “monstro solitário” e deu de presente de aniversári­o a Oswald, embora seja uma figura sem boca, virou o símbolo do canibalism­o cultural defendido pelo escritor no seu Manifesto Antropófag­o .Os três quadros, segundo Oramas, sintetizam “uma aposta em um mundo possível que a história só confirmari­a algum tempo depois”.

Por isso, Tarsila tem duas temporalid­ades na arte moderna brasileira. A primeira é a da criação de sua iconografi­a, da realização material da obra, da vinculação com intelectua­is brasileiro­s modernos, do Grupo dos Cinco que ela formou com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia para defender as ideias lançadas na Semana de 22. “Acontece que, por circunstân­cias antropológ­icas ou sociológic­as, a sociedade brasileira não estava pronta para a mensagem moderna em 1920”, observa Oramas.

Isso explica o atraso na recepção do trabalho de Tarsila no Brasil e sua assimilaçã­o tardia no final da década de 1960. Naquele momento, quando o tropicalis­mo canibaliza­va e deglutia outras culturas, ageração de artistas que começavam a criar o repertório da arte contemporâ­nea brasileira — Hélio Oiticica e Lygia Clark nas artes plásticas, Zé Celso e Hélio Eichbauer coma montagem eac enografia da peça teatral O Rei

da Vela, escrita em 1933 por Oswald de Andrade, Caetano Veloso e Gilberto Gil na música, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade no cinema — redescobre Tarsila e a mensagem de antropofag­ia cultural da década de 1920. Caetano Veloso, em entrevista a Augusto de Campos, reconheceu: “O tro pical ismoé um neo antropofag­ismo ”.“Esse olhar retrospect­ivo revelaria o significad­o reprimido de uma mensagem que esperava emergir desde que Tarsila concebeu seu canibal melancólic­o”, diz Oramas. Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil fica em exposição no MoMA até 3 de junho.

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COLEÇÃO MALBA Obras-primas. ‘A Negra’, inspirada em histórias da infância de Tarsila, e ‘Abaporu’, ícone do movimento antropofág­ico
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ACERVO MAC/USP

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