O Estado de S. Paulo

O doping como uma política de Estado

‘Ícaro’ desvenda doping em massa dos atletas russos e disputa Oscar

- Luiz Zanin Oricchio

Deu na imprensa esta semana: tribunal (CAS, a Corte Arbitral do Esporte) revoga punição por doping de atletas russos. Muitos deles haviam sido condenados pelo resto da vida a não participar de competiçõe­s oficiais por conta de doping na Olimpíada de Inverno de Sochi, em 2014, e 28 conseguira­m reverter a pena. A coisa ainda vai render, porque o COI (Comitê Olímpico Internacio­nal) era quem os havia condenado com base em depoimento de Grigory Rodchenkov, então diretor da agência antidoping de Moscou. Ele é o personagem central do documentár­io Ícaro, concorrent­e ao Oscar em sua categoria e disponível na Netflix.

O filme é dirigido por Bryan Fogel. O próprio Fogel é um ciclista amador que, via Skype, recebe instruções de Rodchenkov sobre a melhor maneira de melhorar seu desempenho, com anabolizan­tes e outras drogas. E, mais importante, como não deixar traços no organismo que possam ser detectados nos exames antidoping. Rodchenkov prevê todo um programa para que Fogel aumente seu desempenho em provas de ponta na Europa.

Entretanto, o projeto de Fogel se amplia de maneira inesperada. De início, pensava apenas submeter-se, como cobaia, de um processo de dopagem para analisar os efeitos sobre seu próprio organismo. Para tanto, pede ajuda a um papa do assunto, Rodchenkov. Mas depois a coisa toma outro rumo e Fogel percebe

que está mexendo com assunto muito mais explosivo do que supunha a princípio.

Em conversas com Rodchenkov, desvenda-se todo o esquema de dopagem que funcionava como política de Estado. Era a pessoa privilegia­da para fazê-lo, justamente porque chefiava o laboratóri­o estatal antidoping. Cientista especializ­ado em descobrir todas as burlas possíveis para esconder traços de dopagem. E, como consequênc­ia, para usá-las em seu favor

caso assim decidisse.

Na verdade, não se trata de decisão pessoal, mas parte de uma política de Estado. Ele seria apenas uma peça nessa engrenagem coletiva. Peça fundamenta­l, que, por sua posição, detinha o conhecimen­to de todas as etapas do processo de dopagem em massa e dos procedimen­tos para apagar traços da sua existência. Entre outros, a sistemátic­a troca de frascos de urina dos atletas por outros que continham urina “limpa”, embora isso fosse considerad­o impossível pelas medidas de segurança adotadas.

Após fornecer informaçõe­s provando o envolvimen­to de funcionári­os do governo russo no esquema, Rodchenkov passou a ser perseguido. Saiu da Rússia e diz que dois colegas haviam morrido em circunstân­cias no mínimo misteriosa­s. Abrigou-se nos Estados Unidos e “desaparece­u” num programa de proteção a testemunha­s.

O documentár­io extrapola de forma criativa suas intenções originais. Situa-se no olho do furacão de um escândalo esportivo internacio­nal com repercussõ­es políticas. Sim, porque só os ingênuos acreditam que política e esporte não mantêm laços entre si. Vladimir Putin, esta semana mesmo, “pediu desculpas” aos atletas do seu país por não ter podido defendê-los de forma adequada. Quer dizer, o doping como programa de Estado jamais seria admitido. A Rússia recebe a Copa do Mundo em junho deste ano e estará sob atenção mundial.

Os atletas russos “perdoados” podem participar da Olimpíada de Inverno, fevereiro, em PyeongChan­g, na Coreia do Sul. Após o caso de Sochi, a Rússia havia sido banida dos jogos coreanos. Mas 169 russos foram autorizado­s a participar na condição de atletas individuai­s, sem direito a bandeira ou a cantar o hino em caso de ouro.

Pela importânci­a do assunto, Ícaro surge como um dos favoritos ao Oscar. O filme é eficaz ao desvendar não apenas um esquema de dopagem, mas a personalid­ade de um dos seus autores, o carismátic­o fanfarrão Grigory Rodchenkov.

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NETFLIX Fogel. De experiênci­a particular a intriga internacio­nal
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