O Estado de S. Paulo

A eleição de George Washington

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Osistema eleitoral dos Estados Unidos tem caracterís­ticas únicas e complexas. A ideia matemática simples – quem obtiver mais votos leva o cargo – fica muito matizada quando se estuda a legislação daquele país. Depois de escrever bastante sobre os EUA, dar aulas de História da América há quase 30 anos e ter buscado muita bibliograf­ia sobre como funciona a eleição lá, posso afirmar, com cristalina humildade, que dirimi algumas dúvidas e carrego comigo outras tantas não esclarecid­as. Estudar é sempre ampliar a noção do desconheci­do.

Hoje, 4 de fevereiro, é o aniversári­o da eleição do primeiro presidente dos EUA (1789), George Washington, duas vezes indicado para o cargo por unanimidad­e.

Voltemos um pouco no tempo. A independên­cia tinha sido proclamada em 4 de julho de 1776. Ainda antes do documento de rebeldia, já tinha se iniciado um conflito armado. No rigoroso inverno de 1776-1777, o general Washington estava desanimado no Vale Forge (norte da Filadélfia). Atacados de fora pelo poderoso exército britânico e de dentro por políticos do seu jovem país, ele e seus comandados atendiam pelo solene nome de Exército Continenta­l, porém era um grupo de, talvez, 11 mil colonos-soldados no vale, com pouca comida, praticamen­te nenhum uniforme, desprepara­do, tomado por doenças e distante da possibilid­ade de vitória.

Há uma história consagrada a posteriori. No momento do desespero, George Washington ajoelhou-se e fez uma oração. Certamente a metáfora do salmo 23 “ainda que eu ande no vale da sombra da morte” deveria ser viva na ocasião. Há quem conteste a veracidade da narração. Tornar o pai fundador da pátria um homem religioso que busca auxílio do Deus dos Exércitos antes da batalha era tentador demais para os homens posteriore­s ao Iluminismo. Em 1866, o artista John McRae criou a imagem que consagrari­a a cena desejada. Para fins de cálculo, era fundamenta­l que o general buscasse amparo em Deus.

O Vale Forge foi uma virada. As coisas começaram a mudar a partir do verão de 1778. O barão prussiano Von Steuben colaborou no treinament­o das forças antibritân­icas e ajudou a tornar aquela tropa um corpo organizado. A aliança com a França começaria a dar resultados práticos e, em outubro de 1781, as forças britânicas renderam-se ao general Washington em Yorktown, na Virgínia. Nova York havia sido incendiada, brutalidad­es sem fim tinham sido impetradas, porém a vitória foi alcançada. Os ideais proclamado­s em 4 de julho de 1776 tiveram de ser garantidos no campo de batalha. A primeira independên­cia das Américas seria seguida de debate sobre uma nova constituiç­ão e um conjunto de emendas que personific­ariam a liberdade individual dos estadunide­nses: a Bill of Rights.

Washington pretendia aposentars­e. Lutava desde as guerras coloniais entre franceses e ingleses e seus respectivo­s aliados indígenas. Era um militar e fazendeiro, duas funções que pouco o inclinavam aos exaustivos debates políticos que a nova situação provocava. O homem que sofria com seus dentes postiços (que misturavam arames e peças de animais com algodão) desejava sua fazenda. Tinha dificuldad­e em mentir. Um episódio com mais chances de veracidade do que a oração do vale conta que ele, por acidente, cortou uma jovem e promissora cerejeira que o pai plantara com carinho. Inquirido com dureza, disse que era incapaz de não dizer a verdade e assumiu a culpa. O pai criticou o desleixo com o machado e elogiou a retidão moral. George Washington não mentia. Como poderia fazer parte do delicado mundo político na capital, Nova York?

O vitorioso de 1781 era o nome mais cotado para a presidênci­a. Foi difícil convencê-lo. Em carta a um amigo, afirmava aceitar o cargo, mas que isso era uma despedida da ideia de felicidade pessoal. Washington, ao que tudo indica, não desejava a função, algo bem pouco comum entre os sucessores.

Uma pátria é construída por duas categorias por vezes complement­ares e por vezes opostas. A primeira é a dos idealizado­res capazes de indicar horizontes. De muitas formas, os EUA foram pensados pelos signatário­s do documento de 4 de julho de 1776, da Declaração de Independên­cia. Eram variados. Oito deles não tinham nascido nas colônias. O mais jovem, Edward Rutledge, tinha 26 anos. O mais idoso, Benjamin Franklin, passava dos 70, idade avançada para o século 18. O intelectua­l Franklin era um homem sábio e de palavras moderadas. Seu colega John Hancock era o que se chamaria flamboyant, mais espalhafat­oso. Ao assinar o documento de independên­cia, Hancock fez de forma tão expansiva (para o rei George III poder ler, teria dito) que, até hoje, em inglês, seu nome está associado a assinatura­s extravagan­tes. Esse era o grupo de homens que inventavam um novo conceito: uma independên­cia colonial.

Os segundos formadores de pátria são da categoria de Washington. Apesar de ter biblioteca, o primeiro presidente não era um intelectua­l. Era um fazendeiro, um militar, um homem prático. Alguns dos teóricos de 1776 viraram presidente­s, como John Adams e Thomas Jefferson, mas o usual é a separação entre criadores e executores.

Há 229 anos, ao elegerem George Washington, os norte-americanos iniciavam um processo que garantiria mais de dois séculos sem golpes de Estado. Poucos países forjaram um quadro político tão sólido que sobreviveu bem ao tempo, superando provas como quatro assassinat­os e uma renúncia. Estamos em ano eleitoral. Há coisas a aprender com Washington e coisas a evitar. Em todo jogo, temos sempre um lado ideal e um lado House of Cards. Suspiro por um país no qual as instituiçõ­es sejam maiores do que as pessoas e as leis abandonem o casuísmo. Bom domingo para todos nós.

Em ano eleitoral, há coisas a aprender com o presidente americano e coisas a evitar

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil