Surfe, ikigai e lenda
Você consegue imaginar alguém aos 90 anos surfando nas águas geladas da Califórnia? Pois esta era a rotina do surfista e bem-sucedido homem de negócios, fundador do império de roupas esportivas, Jack O’Neill, morto em junho do ano passado, aos 94 anos. Com um tapa-olho e uma barba espessa, seu rosto era conhecido em todo o mundo como logotipo da empresa que carrega seu nome. Teve um histórico Memorial Paddle Out (ritual feito no mar em homenagem a surfistas mortos), com mais de 6 mil participantes: aqueles que não entraram nas águas de Pleasure Point (Santa Cruz, EUA) lotaram East Cliff Drive e as rochas em frente da casa à beira-mar de Jack. Milhares o homenagearam com cerimônias no Canadá, Europa, África do Sul e Austrália.
O’Neill, a quem se credita a invenção da roupa de mergulho (embora haja controvérsias a respeito), cresceu em Oregon e no sul da Califórnia, onde começou a surfar no final da década de 1930. Foi piloto da Marinha dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial; mudou-se para São Francisco em 1949 e obteve um bacharelado pela Universidade Estadual de São Francisco. Depois de se formar, instalou-se em Ocean Beach, trabalhando em diversas atividades: salvavidas, pescador, taxista e vendedor.
O’Neill desenvolveu a roupa de borracha por necessidade: “Eu só queria surfar mais”, contou. Por que não permanecer mais tempo no mar, sendo sempre o primeiro a entrar e o último a sair, como o próprio slogan da marca ressalta: “First in, Last Out”? Foi a constatação de que não é necessário ficar seco para ficar quente (daí o termo wetsuit: “terno molhado”) que o motivou a usar o neoprene, em 1951.
O’Neill pode não ter sido o inventor, mas foi inovador e empreendedor, permitindo sempre a prática do esporte em condições mais confortáveis, para surfistas e tantas outras categorias esportivas. Todos os seus amigos disseram à época: “Jack, você vai vender para uns cinco amigos na praia e então seu negócio acabará”. Em 1952, ele fundou a marca O’Neill abrindo uma das primeiras lojas de surfe da Califórnia em uma garagem, em Ocean Beach. Em 1959, mudou-se para Santa Cruz, onde abriu outra loja.
Em 1971, perdeu um olho ao testar o leash desenvolvido por seu filho, Pat. De forma típica e consoante ao seu temperamento, transformou o tapa-olho em um símbolo de sua empresa. No livro Jack O'Neill: It's Always Summer On the Inside (2011), escrito por Drew Kampion, seu filho Pat declara só ter trabalhado com o pai, que foi o seu mentor, e a quem deve o que é hoje. Ele ajudou a consolidar o “clã O’Neill” como uma das famílias de surfe mais inovadoras e influentes no mundo. Sem wetsuit e leash o esporte não teria evoluído para o que é atualmente. Na década de 1980, o traje de borracha O’Neill era o mais vendido no mundo.
Em 1996, Jack criou a O’Neill Sea Odyssey, uma organização sem fins lucrativos que oferece um programa de educação ambiental marinho que já levou cerca de 100 mil crianças ao santuário oceânico de Monterey Bay. “O oceano está vivo, e nós temos de cuidar disso”, disse ele.
Ganhar dinheiro ou fazer o que se gosta? Ter um trabalho ou ter um hobby? Trabalhar ou buscar um propósito? No caso de Jack O’Neill, conclui-se que conseguiu conciliar tudo, vivendo em uma zona ideal que interliga quatro áreas: profissão, vocação, missão e paixão. Embora eu já conhecesse esta abordagem, só recentemente soube tratar-se de “ikigai”, conceito originário da cultura japonesa que significa “razão de viver”.
Paixão é aquilo que você ama; vocação é aquilo que você faz bem; profissão é aquilo que pagam para você fazer; e missão é aquilo do que o mundo precisa. O’Neill era apaixonado pelo surfe e tinha vocação para tal; fez disso sua profissão construindo um negócio rentável; mas foi mais longe: também fez do seu contato permanente com as águas sua missão de vida, procurando conscientizar crianças e jovens sobre a importância de conhecer a relação entre nossas vidas, o meio ambiente e os oceanos.
Apaixonado, inovador, criativo, empreendedor, motivador, resiliente e otimista. Será que todos esses adjetivos referenciados a Jack O’Neill seriam possíveis em alguém que não tivesse encontrado e lapidado sua “ikigai”?