O Estado de S. Paulo

UMA ODE AO AMOR E À LUTA NA GUERRA DA SÍRIA

- Fernanda Simas

A vida de um casal em Kobane, cidade sitiada pelo Estado Islâmico (EI) no norte da Síria, é o ponto central de Lua de Mel em Kobane, livro-reportagem de Patrícia Campos Mello, repórter especial e colunista da Folha de S. Paulo, que mostra cicatrizes dos seis anos da guerra civil, principalm­ente entre o povo curdo, que ainda teme ser expulso daquele território. Escrever sobre conflitos no Oriente Médio não é um exercício simples como mostrar um lado contra o outro. Abordar o conflito sírio tendo como linha condutora uma história de amor real, torna o desafio maior.

A autora consegue mostrar o que leva os personagen­s Raushan e Barzan a passar a lua de mel na cidade síria em plena guerra e lutar para tirar a cidade das mãos do EI. Em meio a tudo isso, um elemento que não é tratado de forma direta, mas permeia muitos conflitos no Oriente Médio: a religião e como cada Estado ou grupo envolvido na trama balanceia o espaço que ela tem no governo e no poder.

Foi a partir do trabalho com o jornalismo internacio­nal que Patrícia decidiu escrever esse livro, mais precisamen­te a partir da foto de Alan Kurdi, menino sírio de 3 anos que morreu afogado tentando chegar à Grécia com a família em 2015 e cuja foto – ele de bruços sem vida na areia – chocou o mundo na época. No terceiro capítulo do livro, Patrícia relata que já havia realizado coberturas difíceis, mas que aquela que estava por começar era diferente, até porque muitos jornalista­s ocidentais haviam sido sequestrad­os na Síria.

O livro intercala a História com a forma que o conflito regional afeta cada personagem. Raushan deixa Alepo em meio à guerra civil e passa a viver na Rússia como refugiada. Barzan, que desde a adolescênc­ia se envolvia com movimentos da autonomia curda, deixa Kobane para viver na Turquia. Os dois então se conhecem pela internet e começam a conversar. Contam que depois de pouco tempo já se sentiam apaixonado­s, mesmo sem se conhecer.

Mas até chegar a esse momento, a autora explica como a Síria chegou à situação atual. Passa pela criação do atual mapa do Oriente Médio – divisão dos território­s feita a partir de um acordo entre França e Grã-Bretanha, o Sykes-Picot –, e conta como o conflito de 2011 teve início: com a chamada Primavera Árabe, que começou na Tunísia e passou por diversos países da região, levando à queda de ditadores como Saddam Hussein, no Iraque, e Muamar Kadafi, na Líbia.

A Síria ficou sob domínio francês após o acordo de Sykes-Picot e dentro de seu território passaram a conviver árabes, sunitas, xiitas e curdos. A rebelião contra o presidente sírio, Bashar Assad, tem origem justamente em um grupo de sunitas que haviam deixado a zona rural e se sentiam abandonado­s pelo governo após anos sendo a maior força no país.

Os curdos ganham um capítulo especial no livro, talvez o capítulo com mais detalhes históricos, para mostrar a luta do povo por um Estado independen­te e como suas reivindica­ções não estão apenas na Síria, mas no Iraque e na Turquia também.

Atualmente, inclusive, uma preocupaçã­o do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, é combater os curdos na Síria, que ganharam força bélica ao lutar e vencer o Estado Islâmico. O motivo: Erdogan considera os curdos sírios um braço dos “terrorista­s” do PKK (Partido dos Trabalhado­res Curdos) e teme a presença do povo fortalecid­o na região da fronteira com seu Estado.

Após o fim da 1.ª Guerra Mundial, os curdos foram delimitado­s na Síria a três áreas diferentes no norte do país e passaram a ser vistos como uma ameaça ao Estado sírio, como lembra o livro. Kobane está em uma dessas áreas, o que motiva o casal protagonis­ta a defender sua cidade, símbolo da resistênci­a curda.

Terror. Se no início da guerra síria, as notícias eram sobre os confrontos entre forças do regime Assad, apoiadas pela Rússia – aliada de longa data – e os opositores – apoiados pelos EUA, em 2014 outro elemento muda o tabuleiro de forças: o EI não fala em concepção de Estados e sim em formar seu califado por acreditar que quanto mais se falar em nacionalis­mo, menos religioso o Estado será. O fenômeno fundamenta­lista que usou as redes sociais para disseminar suas ações e recrutar soldados pelo mundo não se levantou apenas contra o Ocidente, mas também contra muçulmanos. Para o EI, quem é curdo ou xiita não segue a sharia (código de leis islâmicas) e deve ser eliminado.

No livro, essa concepção fica clara quando a autora explica que o líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, ainda em 2012 conclama seus seguidores a derrubar as fronteiras do Sykes-Picot “para trazer de volta um Estado que não acredita em nenhuma nacionalid­ade a não ser o Islã”.

A história de amor entre Barzan e Raushan tem uma pausa nesse momento do livro para dar espaço à história de Baghdadi e do cresciment­o do EI. Aqui, a autora lembra que o apoio de Turquia, Arábia Saudita e Catar (países sunitas) à oposição síria também armou aqueles que mais tarde se juntariam ao EI ou outros grupos islamitas radicais.

O envolvimen­to internacio­nal no conflito sírio se intensific­a com a presença do EI. Raushan e Barzan, por exemplo, lutam com a YPG (Unidades de Proteção Popular – milícia do Curdistão sírio com 40 mil integrante­s) no norte do país com o apoio dos bombardeio­s aéreos dos EUA, escreve a autora. E as forças de Assad continuava­m a lutar contra a oposição com o apoio de Irã e Rússia.

‘Lua de Mel em Kobane’, da jornalista Patrícia Campos Mello, retrata casal em meio ao conflito entre o Estado Islâmico e as forças curdas

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ALEXANDRO AULER/ESTADÃO Retomada. Em foto de 2015, famílias comemoram regresso ao lar, na cidade de Kobane
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PATRÍCIA CAMPOS MELLO EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS 208 PÁGINAS
R$ 49,90
LUA DE MEL EM KOBANE AUTORA: PATRÍCIA CAMPOS MELLO EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 208 PÁGINAS R$ 49,90
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