A SOMBRA DE STALIN
O historiador ucraniano Oleg Khlevniuk merecia um destino melhor no Brasil. Autor de uma das melhores biografias de Stalin até hoje escritas – Stalin, Nova Biografia de um Ditador –, ele a planejou em duas narrativas para expor a um só tempo e separados os eventos de sua vida e os mais importantes traços de sua personalidade e de sua ditadura. Resolveu, por isso, ordenar seu livro como uma matrioshka. A primeira teve sua obra. Quis abrir seu relato sobre o líder soviético examinando primeiro sua personalidade e sistema de poder ao mesmo tempo em que relata as horas finais de Josef Stalin, sua agonia na dacha, os medos de sua entourage até a sessão silenciosa do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética que o privou do poder uma hora antes de sua morte. Entrelaçado a este relato, estão os capítulos que seguem a cronologia e os principais eventos de sua vida em uma sequência cronológica.
E assim é possível lê-lo na edição americana da Yale University Press – onde o autor publicou ainda o monumental The History of Gulag, além de editar a correspondência de Stalin com seus ministros Vyacheslav Molotov e Lazar Kaganovith. A separação entre as duas narrativas cria capítulos com títulos em corpos e fontes tipográficas diferentes, facilitando a leitura ao leitor.
Não foi o que fez a Amarilys ao lançar a obra no Brasil. A editora confundiu o primeiro capítulo da primeira narrativa As Sedes do Poder de Stalin com o mera continuação do prefácio. O mesmo se repete com os demais capítulos da primeira narrativa. Os baluartes do poder de Stalin, segundo capítulo da primeira narrativa, aparece no meio da página final do primeiro capítulo da segunda narrativa: Antes da Revolução. Erro ou não, ele prejudica a leitura do leitor desavisado. Devia ensejar nova edição do livro.
Khlevniuk é importante por ser um dos pesquisadores que mais competentemente vasculham os arquivos de Stalin. É dotado de uma grande capacidade de análise do material reunido. Vai até onde as provas lhe permitem. É assim no caso do assassinato de Sergei Kirov, líder do partido em Leningrado (atual São Petersburgo), que, apesar das coincidências, não imputa a Stalin.
Não se deixou ainda atrair por teorias extravagantes, esposadas por historiadores que sofrem da chamada síndrome do cantor Agepê (Deixa eu te amar/ faz de conta que sou o primeiro). Essa síndrome faz com que o historiador tenha de apresentar algo supostamente original para vender sua obra. Só essa necessidade explica que autores bem preparados derrapem em falsificações e mistificações neostalinistas produzidas na Rússia atual – como a tese de que o Testamento de Lenin é uma fraude – ou que procurem diminuir o papel de Stalin em seus crimes, atribuindo-os a uma miríade de funcionários de baixo escalão, que teriam instigado a repressão em massa, como se o georgiano fosse um simples ditador comum.
Khlevniuk mostra a vasta e sangrenta correspondência entre Stalin e os chefes da NKVD (antiga KGB). Ali estão as famosas ordens de repressão coletiva, como a 00447 contra os “elementos antissoviéticos” e as contra nacionalidades, como poloneses e bálticos. Ou ainda documentos como o que o líder soviético ordenou pessoalmente a tortura de Iosif Unshlikht. “Bata em Unshlikht para que ele nomeie os agentes
poloneses em cada região”, escreveu para o chefe da NKVD, Nikolai Yezhov. Polonês de origem judaica, Unshlikh era um dos fundadores da Tcheka – a polícia política –, trabalhara ainda na inteligência militar e exercera cargos no partido. Preso na operação para “liquidar espiões poloneses”, acabou fuzilado em 1938.
Não havia no Grande Terror (1937-1938), para Khlevniuk, nenhuma função modernizadora inelutável ou necessidade de um destino cruel, como uma grande continuidade entre a violência asiática dos czares e o terror dos revolucionários. Mesmo Stalin, quando iniciou sua revolução agrária em 1929, com a coletivização da Agricultura, teve de voltar atrás em parte de suas medidas diante do caos no campo.
Ou seja: havia limites, caminhos alternativos para o desenvolvimento da revolução que podiam ter permitido ao País se modernizar e vencer a guerra contra os nazistas a um custo menor. O medo da guerra que se aproximava e o isolamento da União Soviética, atacada por nações estrangeiras que fomentavam o conflito civil e a derrubada violenta dos bolcheviques, explicam o contexto do “surto paranoico” de Stalin em 1937, mas não justificam 700 mil fuzilados e 1,5 milhões de presos no Gulag.
Para Khlevniuk, Stalin agiu para consolidar seu poder pessoal e destruir a tradição da liderança coletiva soviética. Matou a velha guarda bolchevique por que não conseguia dissolver os laços de lealdade pessoal entre os companheiros. Precisava de quem lhe fosse absolutamente leal a fim de não ser surpreendido por uma facada nas costas. “A paz de espírito do conquistador requer a morte do conquistado.” A frase atribuída a Gengis Khan foi sublinhada em um dos livros da biblioteca de Stalin. Ela parecia a solução para outra conclusão do ditador: “quanto mais a União Soviética se aproximar do socialismo, mais acirrada será a luta de classes e dura a resistência dos inimigos”.
Sua morte impediu novos expurgos. Ela veio em 1953, e seus herdeiros desmontaram seu sistema de poder. A sombra de Stalin perseguiu o mundo soviético até seu colapso. Khlevniuk convive com ela ainda hoje em Moscou, ainda mais quando “uma porção considerável da sociedade russa procura receitas para o presente no passado stalinista”.
Equívocos na edição nacional não esmaecem o mérito do trabalho do historiador ucraniano Oleg Khlevniuk em sua biografia do ditador soviético