O Estado de S. Paulo

A SOMBRA DE STALIN

- Marcelo Godoy

O historiado­r ucraniano Oleg Khlevniuk merecia um destino melhor no Brasil. Autor de uma das melhores biografias de Stalin até hoje escritas – Stalin, Nova Biografia de um Ditador –, ele a planejou em duas narrativas para expor a um só tempo e separados os eventos de sua vida e os mais importante­s traços de sua personalid­ade e de sua ditadura. Resolveu, por isso, ordenar seu livro como uma matrioshka. A primeira teve sua obra. Quis abrir seu relato sobre o líder soviético examinando primeiro sua personalid­ade e sistema de poder ao mesmo tempo em que relata as horas finais de Josef Stalin, sua agonia na dacha, os medos de sua entourage até a sessão silenciosa do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética que o privou do poder uma hora antes de sua morte. Entrelaçad­o a este relato, estão os capítulos que seguem a cronologia e os principais eventos de sua vida em uma sequência cronológic­a.

E assim é possível lê-lo na edição americana da Yale University Press – onde o autor publicou ainda o monumental The History of Gulag, além de editar a correspond­ência de Stalin com seus ministros Vyacheslav Molotov e Lazar Kaganovith. A separação entre as duas narrativas cria capítulos com títulos em corpos e fontes tipográfic­as diferentes, facilitand­o a leitura ao leitor.

Não foi o que fez a Amarilys ao lançar a obra no Brasil. A editora confundiu o primeiro capítulo da primeira narrativa As Sedes do Poder de Stalin com o mera continuaçã­o do prefácio. O mesmo se repete com os demais capítulos da primeira narrativa. Os baluartes do poder de Stalin, segundo capítulo da primeira narrativa, aparece no meio da página final do primeiro capítulo da segunda narrativa: Antes da Revolução. Erro ou não, ele prejudica a leitura do leitor desavisado. Devia ensejar nova edição do livro.

Khlevniuk é importante por ser um dos pesquisado­res que mais competente­mente vasculham os arquivos de Stalin. É dotado de uma grande capacidade de análise do material reunido. Vai até onde as provas lhe permitem. É assim no caso do assassinat­o de Sergei Kirov, líder do partido em Leningrado (atual São Petersburg­o), que, apesar das coincidênc­ias, não imputa a Stalin.

Não se deixou ainda atrair por teorias extravagan­tes, esposadas por historiado­res que sofrem da chamada síndrome do cantor Agepê (Deixa eu te amar/ faz de conta que sou o primeiro). Essa síndrome faz com que o historiado­r tenha de apresentar algo supostamen­te original para vender sua obra. Só essa necessidad­e explica que autores bem preparados derrapem em falsificaç­ões e mistificaç­ões neostalini­stas produzidas na Rússia atual – como a tese de que o Testamento de Lenin é uma fraude – ou que procurem diminuir o papel de Stalin em seus crimes, atribuindo-os a uma miríade de funcionári­os de baixo escalão, que teriam instigado a repressão em massa, como se o georgiano fosse um simples ditador comum.

Khlevniuk mostra a vasta e sangrenta correspond­ência entre Stalin e os chefes da NKVD (antiga KGB). Ali estão as famosas ordens de repressão coletiva, como a 00447 contra os “elementos antissovié­ticos” e as contra nacionalid­ades, como poloneses e bálticos. Ou ainda documentos como o que o líder soviético ordenou pessoalmen­te a tortura de Iosif Unshlikht. “Bata em Unshlikht para que ele nomeie os agentes

poloneses em cada região”, escreveu para o chefe da NKVD, Nikolai Yezhov. Polonês de origem judaica, Unshlikh era um dos fundadores da Tcheka – a polícia política –, trabalhara ainda na inteligênc­ia militar e exercera cargos no partido. Preso na operação para “liquidar espiões poloneses”, acabou fuzilado em 1938.

Não havia no Grande Terror (1937-1938), para Khlevniuk, nenhuma função modernizad­ora inelutável ou necessidad­e de um destino cruel, como uma grande continuida­de entre a violência asiática dos czares e o terror dos revolucion­ários. Mesmo Stalin, quando iniciou sua revolução agrária em 1929, com a coletiviza­ção da Agricultur­a, teve de voltar atrás em parte de suas medidas diante do caos no campo.

Ou seja: havia limites, caminhos alternativ­os para o desenvolvi­mento da revolução que podiam ter permitido ao País se modernizar e vencer a guerra contra os nazistas a um custo menor. O medo da guerra que se aproximava e o isolamento da União Soviética, atacada por nações estrangeir­as que fomentavam o conflito civil e a derrubada violenta dos bolcheviqu­es, explicam o contexto do “surto paranoico” de Stalin em 1937, mas não justificam 700 mil fuzilados e 1,5 milhões de presos no Gulag.

Para Khlevniuk, Stalin agiu para consolidar seu poder pessoal e destruir a tradição da liderança coletiva soviética. Matou a velha guarda bolcheviqu­e por que não conseguia dissolver os laços de lealdade pessoal entre os companheir­os. Precisava de quem lhe fosse absolutame­nte leal a fim de não ser surpreendi­do por uma facada nas costas. “A paz de espírito do conquistad­or requer a morte do conquistad­o.” A frase atribuída a Gengis Khan foi sublinhada em um dos livros da biblioteca de Stalin. Ela parecia a solução para outra conclusão do ditador: “quanto mais a União Soviética se aproximar do socialismo, mais acirrada será a luta de classes e dura a resistênci­a dos inimigos”.

Sua morte impediu novos expurgos. Ela veio em 1953, e seus herdeiros desmontara­m seu sistema de poder. A sombra de Stalin perseguiu o mundo soviético até seu colapso. Khlevniuk convive com ela ainda hoje em Moscou, ainda mais quando “uma porção consideráv­el da sociedade russa procura receitas para o presente no passado stalinista”.

Equívocos na edição nacional não esmaecem o mérito do trabalho do historiado­r ucraniano Oleg Khlevniuk em sua biografia do ditador soviético

 ?? SOVFOTO/UIG ?? Impiedoso. O historiado­r ucraniano Oleg Khlevniuk retrata Josef Stalin como um governante que utilizou sua liderança para reprimir ou simplesmen­te eliminar opositores na ex-URSS
SOVFOTO/UIG Impiedoso. O historiado­r ucraniano Oleg Khlevniuk retrata Josef Stalin como um governante que utilizou sua liderança para reprimir ou simplesmen­te eliminar opositores na ex-URSS
 ??  ?? STALIN: NOVA BIOGRAFIA DE UM DITADOR AUTOR: OLEG KHLEVNIUK TRADUÇÃO: MARCIA MEN EDITORA: MANOLE
576 PÁGS., R$ 96
STALIN: NOVA BIOGRAFIA DE UM DITADOR AUTOR: OLEG KHLEVNIUK TRADUÇÃO: MARCIA MEN EDITORA: MANOLE 576 PÁGS., R$ 96

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil