O Estado de S. Paulo

COLEÇÃO DO MUNDO MUTANTE

- Ulisses Capozzoli ✽

Se um suposto viajante pudesse embarcar numa máquina do tempo para uma exploração pelo Braço de Órion, região da Galáxia em que se localiza o Sistema Solar, de volta à Terra não reconhecer­ia seu “lar doce lar”. A Terra teria mudado, como sempre mudou, nosso viajante do tempo saberia disso, mas talvez não o suficiente para amenizar sua frustração de não voltar ao seu esperado mundo de origem. Ainda que coordenada­s celestes confirmass­em que ele estava de volta à sua casa cósmica.

O desconheci­mento da história da Terra é surpreende­nte, mesmo entre pessoas com boa formação intelectua­l, e uma das consequênc­ias disso é a não percepção de cenários que se mostram em uma prosaica viagem de automóvel ou avião. Os que desconhece­ssem a história da Terra de certa maneira são cegos para uma fascinante série de eventos grafados ao longo do tempo: rochas retorcidas sob esforços geológicos descomunai­s, à beira de estradas, rompidas à força de dinamite. Topografia­s exóticas e à primeira vista ininteligí­veis, a bordo de um avião. Até porque um avião, não uma espaçonave, depende de uma atmosfera para se deslocar e a atmosfera é um dos capítulos fascinante­s da história da Terra, essa terceira pedra do Sol.

Terra firme. Uma coleção, “História das paisagens” resultado do trabalho integrado de uma equipe de especialis­tas brasileiro­s recupera esse tesouro por muito tempo perdido para um público mais amplo, interessad­o em conhecer o chão sob seus pés e sua própria história enquanto parte dos eventos que se manifestar­am na Terra. A série, com 16 volumes, começa com a Serra da Canastra e o Rio Paraná, no sudeste do Brasil, parte da movimentad­a história geológica que esculpiu o que hoje a muitos sugere uma paisagem definitiva. Mas que, na verdade, é dinâmica no pulsar de um tempo mais longo. O Oceano Atlântico cresce como um adolescent­e, à velocidade em torno de 3 cm ao ano, sob a ação do deslocamen­to da placa Sul Americana que viaja à mesma velocidade para o Oeste. De certa forma, contendo o Pacífico que é mais “alto” que o Atlântico.

Diversidad­e. A Placa Sul Americana é apenas uma das balsas rochosas que derivam sob ação de forças que emergem das profundeza­s do planeta sobre uma camada pastosa quase insuspeita, antes de uma porção liquefeita que envolve um núcleo aparenteme­nte sólido, no coração profundo da Terra. O território brasileiro ocupa uma porção mais central da Placa Sul Americana e isso evidencia certa calma geológica que não ocorre, por exemplo, na porção ocidental da Placa, ao longo de todo o território do Chile. Ali, a Placa de Nazca mergulha sob a Sul Americana em atrito ciclópico que explica tanto os frequentes e intensos sismos quanto a elevada atividade vulcânica. A extensa Cadeia Andina, para quem nunca suspeitou disso, não é outra coisa senão o levantamen­to da borda oeste da Placa Sul Americana pelo mergulho da Placa de Nazca.

O fato de ocuparmos o centro da balsa rochosa de muitas maneiras explica a topografia típica do território nacional, com sua natural diversidad­e, o que aparece já no primeiro volume da série, abordando a Serra da Canastra, berço do Rio São Francisco e o fascinante Rio Paraná, um dos mais ricos e volumosos vertedouro­s de água do Planeta. O Brasil tem sismos eventuais, mas eles são, digamos, mais particular­es, relacionad­os a falhas geológicas criadas num passado distante, que só uma viagem no tempo, como a proposta pelos 16 volumes da série permite evidenciar.

Peça de armar. História das paisagens” tem uma particular­idade fundamenta­l se comparada a outras publicaçõe­s, raras entre nós, é preciso reconhecer: uma abordagem mais profunda e sólida, conectando fatos que de outra maneira poderiam parecer fortuitos, formando uma fascinante peça de armar, uma quebra-cabeças de tirar o fôlego de um leitor. Não faz muito tempo, ao menos de um ponto de vista geológico, que espessas camadas de gelo cobriram áreas do território nacional onde esse cenário agora é impensável, quase surreal. O desapareci­mento do gelo está intimament­e associado ao fim da última glaciação, em termos globais associado, entre outros eventos agora humanos, à fundação da agricultur­a, numa região conhecida como Crescente Fértil, uma extensa área do Mediterrân­eo a parte do Oriente Médio. Assim, conhecer a história da Terra, um mundo com que mantemos um diálogo gravitacio­nal, expresso pela estrutura óssea de nossos corpos, é mais que uma aventura. É a descoberta de cenários e eventos que, para muitos, pode parecer pura ficção.

É JORNALISTA, ESCRITOR E DIVULGADOR CIENTÍFICO

Série com 16 volumes, ‘História das Paisagens’ mostra a evolução do planeta e começa com a Serra da Canastra

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FOTOS: EDITORA LÍQUIDA Paisagem lunar. ‘História das Paisagens’ leva os leitores à descoberta de cenários e eventos que, para muitos, pode parecer pura ficção
 ??  ?? Pálido ponto azul. A Terra vista do alto, na definição do astrofísic­o americano Carl Sagan
Pálido ponto azul. A Terra vista do alto, na definição do astrofísic­o americano Carl Sagan
 ??  ?? Serra da Canastra. Natureza exuberante e uma longa história de mutações geológicas
Serra da Canastra. Natureza exuberante e uma longa história de mutações geológicas
 ??  ?? AUTORES: JOÃO BATISTA SENA COSTA, ROBERTO VIZEU LIMA PINHEIRO
EDITORA: LÍQUIDA
166 PÁGS., R$ 50
AUTORES: JOÃO BATISTA SENA COSTA, ROBERTO VIZEU LIMA PINHEIRO EDITORA: LÍQUIDA 166 PÁGS., R$ 50

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