O Estado de S. Paulo

A VANGUARDA DA SINFONIETT­A

- Michael White / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ.

A Sinfoniett­a de Londres não sofre de nostalgia. Ela cultua tanto a música nova que as partituras chegam aos músicos com a tinta ainda fresca. O negócio dessa sinfoniett­a (orquestra maior que a de câmara e menor que a sinfônica) é o presente, não o passado. Isso pode ser um problema na hora de celebrar meio século de estrada. Comemora-se o passado ou o futuro?

Com sua temporada especial de 50.º aniversári­o, transcorri­do neste ano, a Sinfoniett­a de Londres faz as duas coisas. O programa comemorati­vo privilegia músicas hoje considerad­as “clássicas”, de compositor­es que o grupo abraçou através das décadas: Berio, Henze, Ligetti, Stockhause­n. Mas entram também figuras de nosso tempo: Hans Abrahamsen, Tansy Davies, Philip Venables. E ponto alto da temporada foi o concerto de 24 de janeiro, data em que a Sinfoniett­a comemorou os 50 anos de sua primeira apresentaç­ão.

Segundo Nicholas Snowman, um dos cofundador­es da orquestra, o concerto atraiu tanto interesse “porque o que proporcion­amos é único”.

“Hoje, quase todo mundo toca algum tipo de música contemporâ­nea”, disse Snowman. “Mas o mundo de 1968 era diferente e nele obras inovadoras frequentem­ente eram jogadas para escanteio.” Além disso, “as peças costumavam ser mal executadas, sem muita preparação”, disse ele. “Éramos arrogantes o bastante para acreditar que conseguirí­amos fazer”, prosseguiu, aludindo a outro fundador da orquestra, o maestro David Atherton.

Na época, ambos estavam na faixa dos 20 anos e tinham acabado de se formar na Universida­de Cambridge, onde chamaram a atenção como empreended­ores musicais. Procurando então um projeto, decidiram montar uma orquestra que fizesse justiça à música contemporâ­nea.

O primeiro concerto, em 1968, deu poucos indícios do rumo que a Sinfoniett­a eventualme­nte tomaria, mas causou impacto. O número principal foi a auspiciosa apresentaç­ão de um ruidoso e e anárquico oratório de John Taverner chamado The Whale.

“Fui colega de escola de Taverner e sabia que essa peça havia sido escrita para o Bach Choir – que não a quis, talvez por motivos óbvios”, recordou Snowman. “Então eu a sugeri para Atherton, que disse: ‘Por que não?’”

“Era assim que fazíamos na época. Não havia planejamen­to, projeto de negócios; se achávamos interessan­te, apresentáv­amos”, resumiu Snowman.

O sucesso imediato de The Whale alavancou com um só golpe o nome de Taverner e da Sinfoniett­a. William Glock, o poderoso diretor musical da BBC, acreditava que era preciso dar aos ouvintes não aquilo de que eles já gostavam, mas (insistia) “aquilo de que viriam a gostar”. Ofereceu Imediatame­nte espaço para uma segunda performanc­e no Royal Albert Hall durante o Proms, um dos maiores festivais de música clássica do mundo, da BBC. Os Beatles também se interessar­am: queriam a gravação para seu selo, Apple, totalmente voltado para música pop.

Snowman teve papel ativo na gravação. “Entre a parafernál­ia que a peça exigia, como metrônomos amplificad­os e reco-recos de torcida de futebol, havia uma bateria de megafones”, disse ele. “Eu levava um, meu pai outro e Ringo Starr um terceiro.”

Após esse ousado começo, a Sinfoniett­a encontrou sua verdadeira vocação com a chegada de Pierre Boulez. Boulez estava em conflito com o Ministério da Cultura da França e se recusava a reger qualquer orquestra em seu país. Começou a trabalhar com a Sinfoniett­a, organizand­o grandes tours europeus a partir de 1971 que atraíram outros astros da música contemporâ­nea, entre eles o compositor italiano Luciano Berio.

“Quando caiu a ficha”, disse Snowman, “compreendi que com grandes nomes como esses conseguirí­amos contratos em qualquer parte. E, com o dinheiro que ganhamos no exterior – nessa época, parecia dar em árvore –, podíamos financiar na Grã-Bretanha projetos que de outro modo seriam inviáveis.”

Andrew Burke, executivo, vê os 50 anos da orquestra como uma busca constante de padrões de performanc­e cada vez mais altos. “Desde o começo”, disse ele, “éramos um pool de virtuoses: um núcleo de 16 músicos que eram os melhores não apenas em música contemporâ­nea, mas em todos os gêneros.”

“A Sinfoniett­a”, acrescento­u, “cruzou os limites do que se poderia esperar em termos de desempenho técnico – e seguiu avançando.”

Isso continua sendo verdade, embora meio século depois novas orquestras de elite tenham cruzado esses limites antes tidos como quase intranspon­íveis. No entanto, a maioria delas, como Ensemble Intercompo­rain, Ensemble Modern ou Klangforum Wien, foi criada à imagem da Sinfoniett­a.

“Não somos mais os únicos”, disse Burke. “Temos competidor­es, e isso é para ser comemorado. As outras bandas são parte de nosso legado. Se não existissem, poderiam surgir dúvidas sobre nossa relevância.”

A Sinfoniett­a persuadiu plateias a gostar de alguns dos mais pesados sons que fez no passado. Mas sua escolha de repertório nunca se prendeu à linha dura. Os Boulez e Xenakis foram sempre amenizados com obras mais suaves de John Adams ou Steve Reich. A Sinfonia N.º 3 de Henrik Gorecki tornou-se uma obra fácil de ouvir quando a Sinfoniett­a a gravou, em 1991.

O repertório da Sinfoniett­a hoje reflete um pluralismo musical vale-tudo que passa dos anfiteatro­s para clubes nos quais o rock, o pop e a música experiment­al coexistem livremente. A atual temporada abriga workshops, uma colaboraçã­o com o fotógrafo Andreas Gursky e uma peça descrita como “game show multimídia com carga política”, na qual o compositor Philip Venables convida a plateia a questionar conceitos de gênero

Mais convencion­al, embora ocorra numa gráfica desativada não em um teatro, é a apresentaç­ão de The Cave, ópera da compositor­a britânica Tansy Davies. Ela disse numa entrevista que adorou na Sinfoniett­a por “seu destemor e sua pronta disposição em fragmentar uma peça, se esta exigir, com a energia do heavy metal”.

Há ainda o foco no trabalho de mulheres, com apresentaç­ões de Charlotte Bray, Unsuk Chin e Rebecca Saunders, três diferentes vozes que vão do melodioso ao rude.

“Nosso único critério na programaçã­o é acreditarm­os que a obra é boa”, disse Burke.

Não é à toa que a temporada de aniversári­o da Sinfoniett­a leve o tag de “Negócios inconcluso­s”.

Completand­o meio século de atividade, a orquestra londrina cultiva o prestígio de prezar pela erudição sem se ater ao passado nostálgico

 ?? CLAUDIA GRECO ?? Em casa. A London Sinfoniett­a durante apresentaç­ão no L.S.O. St Luke’s, centro musical da Orquestra Sinfônica de Londres, em 2016
CLAUDIA GRECO Em casa. A London Sinfoniett­a durante apresentaç­ão no L.S.O. St Luke’s, centro musical da Orquestra Sinfônica de Londres, em 2016
 ?? LONDON SINFONIETT­A ARCHIVE ?? Formação. Alguns dos primeiros membros da London Sinfoniett­a na sala de concertos Queen Elizabeth Hall, por volta de 1970
LONDON SINFONIETT­A ARCHIVE Formação. Alguns dos primeiros membros da London Sinfoniett­a na sala de concertos Queen Elizabeth Hall, por volta de 1970
 ?? CHRIS DAVIES ?? Na estrada. Em 1982, o clarinetis­ta Antony Pay tocou ‘Miracle of the Rose’, de Hans Werner Henze, com a London Sinfoniett­a
CHRIS DAVIES Na estrada. Em 1982, o clarinetis­ta Antony Pay tocou ‘Miracle of the Rose’, de Hans Werner Henze, com a London Sinfoniett­a

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