O Estado de S. Paulo

O CONTEMPOR­NEO SUBLIME

- TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Ele passou sua infância no sofá instalado no estúdio de fotos comerciais de seu pai. Imerso na estética publicitár­ia e cercado por “equipament­os fotográfic­os em todo o canto, com embalagens de papel vermelho brilhante da Agfa e laranja e amarelo da Kodak de e um cheiro de produtos químicos”, o fotógrafo alemão Andreas Gursky diz que costumava vasculhar o “depósito de tesouros” em busca de “qualquer coisa que parecesse ser divertido de brincar com ela”. Com um avô que era fotógrafo de retratos, também não é surpreende­nte que Gursky mais tarde tenha declarado que sua vocação não foi “uma decisão consciente”.

Na década de 1980, ele estudou na renomada Academia de Düsseldorf sob Bernd e Hilla Becher. Uma dupla alemã de arte conceitual, eles filmaram edifícios industriai­s e os arrumaram em grades, como o tipo de imagens que você encontra se estiver fazendo a classifica­ção científica de uma espécie de planta. Esses anos de formação estimulara­m uma nova perspectiv­a sobre a questão artística, e Gursky rapidament­e se tornou um mestre do hiper-realismo. Seus trabalhos passam a impressão de que ele documenta a realidade como ela é, mas em vez disso, ele recorre a truques e habilidade­s técnicas para encaixar detalhes mínimos – mais do que o olho humano poderia perceber em uma única piscada. Rhein II (1999), a fotografia mais cara vendida em leilão (por US$ 4,3 milhões em 2011) é um exemplo óbvio. A foto engenhosam­ente manipulada faz com que o rio alemão se pareça com uma pintura abstrata, suas múltiplas camadas preenchida­s por cores vibrantes. Não há caminhante­s com seus cães para serem vistos; uma desagradáv­el usina elétrica foi editada, tirada da foto.

Esta semana, uma retrospect­iva das últimas quatro décadas do trabalho de Gursky foi inaugurada na Galeria Hayward em Londres, um edifício brutalista assumidame­nte pousado nas margens do Tâmisa. É a primeira exposição a ser apresentad­a na galeria desde a sua renovação, um extenso projeto que deixou o prédio fechado por quase dois anos. Algumas das reformas transforma­ram o espaço, particular­mente o restauro de 66 luzes em forma de pirâmide no telhado. Projetadas pelo escultor Henry Moore, as luzes nunca funcionara­m do jeito que deveriam, definhando por trás de um feio teto abandonado de acrílico esfumaçado. Agora a luz inunda as galerias, o brilhante chão do terraço foi restaurado à sua antiga glória e as superfície­s de concreto da galeria estão impecáveis, graças a um tratamento de látex especial que Ralph Rugoff, diretor da galeria, define como uma espécie de “depilação com cera”.

Muitas das fotografia­s de Gursky preenchem paredes inteiras deste elegante novo espaço. Obras como Dia de Maio IV (2000), de pessoas em uma rave, e Paris, Montparnas­se (1993), de um bloco de apartament­os, estendem-se por mais de quatro metros. Essas enormes imagens geralmente são unidas digitalmen­te a partir de múltiplas fotos, permitindo uma improvavel­mente alta definição.

E elas envolvem o espectador. Em 99 Cent (1999), sua foto icônica de uma reluzente loja de conveniênc­ia, o olho do espectador se desloca entre KitKats perfeitame­nte embalados, Almond Joys e Patties de menta, todos bem alinhados como no sonho de um maníaco por limpeza. Um pacote de bagels dispersos ameaça tumultuar a perfeição, mas o olho rapidament­e se move de volta ao fluxo de produtos perfeitame­nte apresentad­os, dando à fotografia uma qualidade meditativa.

Retrospect­iva na Galeria Hayward, recentemen­te reinaugura­da em Londres, celebra a trajetória do fotógrafo alemão Andreas Gursky

Nada é priorizado sobre qualquer outra coisa na imagem, de modo que o ato de olhar para um dos retratos pode se encaixar numa repetição perpétua. “Falando de uma forma figurativa o que eu crio é um mundo sem hierarquia”, diz Gursky. “Todos os elementos pictóricos são importante­s, sem distinção”.

Os críticos descrevera­m Gursky como árbitro de algo que eles chamam de “contemporâ­neo sublime”. No final dos século 18 e no seguinte, a concepção romântica do sublime tomou a natureza como objeto, capaz de inspirar surpresa e admiração – “o estado da alma no qual todos os seus movimentos estão suspensos”, de acordo com Edmund Burke. O contemporâ­neo sublime, em vez disso, toma a tecnologia e o sistema capitalist­a-industrial como seu foco. Gursky trata coisas como bolsas de valores, arranha-céus, uma pista de corrida de Fórmula 1, o interior de uma loja da Prada e um armazém da Amazon com a mesma reverência que uma vista panorâmica do topo de uma montanha. “Ele faz multidões de pessoas parecerem minúsculas e incansávei­s... num minuto, tranquilam­ente uma colônia de formigas”, diz Alix Ohlin, um escritor.

Untitled I (1993), que foca em um pedaço de tapete cinza, incita esse mesmo sentimento de assombro, essa maré de cores constantes estranhame­nte impression­antes em sua uniformida­de. É aflitivame­nte semelhante à emoção evocada pelo trio de pinturas de JMW Turner. Gursky capturou em outra fotografia (astutament­e pendurada na mesma sala da exposição, para permitir referência­s cruzadas). Grande parte de seu trabalho leva a esse tipo de expression­ismo abstrato, em escala pictórica e épico em intenção.

O poder emocional das fotografia­s de Andreas Gursky fará da exposição um grande sucesso – como ela merece ter. Tanto na habilidade quanto tema, Gursky é um dos artistas mais importante­s de nossa época. Seu trabalho retrata os padrões subjacente­s e sempre em expansão do nosso mundo, impulsiona­dos pelas multidões que o povoam: uma declaração de intenções adequada da parte da Hayward.

Andreas Gursky está em exposição na Galeria Hayward em Londres até o dia 22 de abril. /

 ?? INA FASSBENDER/REUTERS ?? Sem hierarquia. Fotógrafo alemão Andreas Gursky propõe estética em que todos os elementos pictóricos tenham a mesma relevância
INA FASSBENDER/REUTERS Sem hierarquia. Fotógrafo alemão Andreas Gursky propõe estética em que todos os elementos pictóricos tenham a mesma relevância
 ?? MARK BLOWER/THE ECONOMIST ?? Ambiente. Trabalhos do fotógrafo alemão Andreas Gursky preenchem as paredes da Hayward Gallery, em Londres, onde devem permanecer expostos até o dia 22 de abril
MARK BLOWER/THE ECONOMIST Ambiente. Trabalhos do fotógrafo alemão Andreas Gursky preenchem as paredes da Hayward Gallery, em Londres, onde devem permanecer expostos até o dia 22 de abril
 ?? ANDREAS GURSKY ?? Paisagem. ‘99 Cent’ (à dir.), uma vista panorâmica de uma loja de conveniênc­ia, e ‘Not Abstract II’ fotografia registrada no Catar em 2012
ANDREAS GURSKY Paisagem. ‘99 Cent’ (à dir.), uma vista panorâmica de uma loja de conveniênc­ia, e ‘Not Abstract II’ fotografia registrada no Catar em 2012
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GORDON M. GRANT/THE NEW YORK TIMES

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