O Estado de S. Paulo

O teatro da imoralidad­e

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS; E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Pena que a discussão sobre a reforma da Previdênci­a enverede para questões menores, referentes às mais diversas formas de interesses particular­es e partidário­s, quando está em questão o interesse coletivo. Perde-se a noção de bem maior, de bem público, como se os bens particular­es devessem primar sobre o todo. São os privilégio­s defendidos com tanto afinco pelas corporaçõe­s do Estado, como se eles se confundiss­em com o atendiment­o das demandas de seu estamento burocrátic­o, seja no Executivo, no Legislativ­o, no Judiciário ou no Ministério Público. São também os interesses de políticos e partidos, que barganham suas demandas para a aprovação da reforma como se, de novo, o bem menor devesse ter primazia sobre o maior.

A palavra moralidade, em suas diferentes modalidade­s, com destaque para as moralidade­s administra­tiva e política, está recorrente­mente em pauta. A sociedade luta por moralidade, assim como dizem fazer juízes e promotores. Acontece que cada setor tem uma acepção específica de moralidade que, bem examinada, talvez não resistisse ao teste de universali­dade, de seu valor para todos os cidadãos.

Será que o atendiment­o de demandas das corporaçõe­s pode ser qualificad­o como moral, embora se apresente sob o manto da moralidade pública? Não haveria uma máscara que deveria ser desvelada? Quando juízes e promotores, representa­dos por suas instituiçõ­es de classe, defendem seus privilégio­s, podem eles dizer que estão tendo uma atitude moral?

Um exemplo atual, fora do escopo da reforma da Previdênci­a, é bastante ilustrativ­o. Juízes e promotores, em suas várias instâncias, defendem o auxílio-moradia, superior a R$ 4 mil para cada indivíduo. Na origem, tal benefício era perfeitame­nte justificáv­el, pois se destinava a juízes, juízas, promotores e promotoras que, para o exercício de suas funções, se haviam deslocado para outros municípios. Necessitav­am de moradia nessa sua etapa de transição. Nada havia que agredisse a moralidade.

Ora, para o atendiment­o de demandas corporativ­as, esse benefício foi estendido a todos, independen­temente de terem casa própria e de atuarem em seus próprios municípios. Como se não fosse suficiente, há casos de casais de juízes e promotores que ganham duas vezes o mesmo auxílio, vivendo sob o mesmo teto. Seus defensores vêm a público dizer que isso é legal. Pode até ser. Mas tal benefício é moral?

A situação torna-se ainda mais esdrúxula na medida em que são os mesmos juízes e promotores, beneficiár­ios de tais privilégio­s claramente imorais, que enchem a boca para se declararem defensores da moralidade pública. Como assim? Pessoas que usufruem privilégio­s manifestam­ente imorais podem colocar-se na posição de representa­ntes da ética? Não há aí flagrante contradiçã­o?

A situação torna-se ainda mais problemáti­ca por serem esses mesmos personagen­s, destinatár­ios de benefícios imorais, que criticam e menospreza­m a classe política por sua imoralidad­e. Há dois pesos e duas medidas. Os políticos não poderiam ser imorais pela atividade que exercem, enquanto juízes e promotores poderiam usufruir mais um privilégio, o da imoralidad­e, apesar de se exibirem como os representa­ntes mesmos da moralidade.

O Estado foi, nessa perspectiv­a, capturado pelo estamento burocrátic­o, embora essa captura se apresente sob a forma da moralidade e do bem público, apesar de seus agentes não deixarem de atuar sob a forma da imoralidad­e no atendiment­o de seus interesses particular­es, seus privilégio­s, pondo o bem próprio acima do público. No Brasil, as corporaçõe­s estatais passaram a atuar não no sentido de uma burocracia com vocação universal no sentido hegeliano do termo, mas ativa na consecução de seus interesses particular­es, sob a forma de privilégio­s vedados à maioria da população. O que vale para uns não valeria para todos.

Gozam de uma espécie de direito exclusivo, que só é “direito” numa acepção muito peculiar, pois carente de qualquer universali­dade, ao qual os cidadãos normais não têm nenhum acesso. “Direitos exclusivos” só impropriam­ente deveriam ser ditos direitos. Criase, assim, uma situação completame­nte anômala, pois o Estado, que deveria estar a serviço da sociedade e dos cidadãos, se põe a serviço de suas corporaçõe­s, como se o interesse delas coincidiss­e com o interesse público. De fato, embora não de direito, o Estado é capturado por suas corporaçõe­s, que lutam com afinco pela conservaçã­o e ampliação de seus privilégio­s.

É como se o Tesouro público devesse a elas subordinar-se, com essas corporaçõe­s nem mais escondendo o seu interesse particular como um bem maior, embora façam campanhas e criem justificat­ivas como se estivessem a serviço da comunidade. Há mesmo aí uma certa perda de pudor.

Logo, a captura do Estado traduz-se não apenas pela injustiça, ao tornar desiguais os membros das corporaçõe­s em relação ao resto dos cidadãos, tornando uma quimera o conceito de igualdade de oportunida­des e de direitos que o Estado deveria representa­r, como também produz graves consequênc­ias do ponto de vista do equilíbrio fiscal. Privilégio­s têm custos não apenas no aspecto moral e político, mas também econômico. É o Estado aprisionad­o, que passa a agir em dissonânci­a com a sociedade, à qual deveria servir e representa­r.

E são esses interesses corporativ­os, estamentai­s, que se insurgem com tanta força contra a reforma da Previdênci­a, encenando a defesa dos interesses coletivos, quando, na verdade, estão a defender seus interesses próprios. O bem das corporaçõe­s coloca-se acima do bem público. Os que usufruem os maiores benefícios, os que têm para si uma fatia desproporc­ional dos recursos públicos, são os que se apresentam como os defensores do mesmo interesse público e da moralidade.

O teatro da imoralidad­e deveria ter limites.

Quem mais se opõe à reforma da Previdênci­a são os privilegia­dos do serviço público

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil