O Estado de S. Paulo

Petrojudic­ialização

- ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA DOUTOR PELA UFMG, PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO, É DESEMBARGA­DOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS

Divulgou-se recentemen­te que a Petrobrás, depois de três anos de litígio judicial, propôs pagar US$ 2,95 bilhões para encerrar um processo coletivo movido por acionistas nos Estados Unidos. Os investidor­es pedem indenizaçã­o por perdas no valor das ações da estatal brasileira desde que ela foi alvo de denúncias de corrupção (Operação Lava Jato).

A empresa, porém, não indenizará espontanea­mente os investidor­es brasileiro­s.

No Brasil, a “judicializ­ação” da vida social foi incrementa­da vertiginos­amente após a redemocrat­ização e a promulgaçã­o da Constituiç­ão de 1988. Tornamo-nos incapazes de solucionar, sem recorrer ao Poder Judiciário, conflitos de toda natureza, públicos ou privados. Em 2017 fui relator de um recurso de agravo de instrument­o, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que a agravante pretendia uma medida liminar para suspender o resultado de um concurso de miss.

Com muita propriedad­e, o jurista Kazuo Watanabe afirmou que ainda utilizamos pouco os métodos de solução extrajudic­ial de conflitos, porque temos uma “cultura da sentença” (Notícias do STJ, 22/7/2016).

Disso se aproveita a Petrobrás, a maior empresa estatal brasileira. Como bem salientou este jornal, o acordo de Nova York “é uma demonstraç­ão da eficiência do sistema judiciário americano na proteção dos direitos dos acionistas e investidor­es e das falhas do sistema brasileiro nesse aspecto” (editorial O acordo da Petrobrás, 5/1).

Desde a fundação dos Estados Unidos e até este início do século 21, o Direito, o processo e o sistema legal têm enorme relevância na sociedade norteameri­cana. É uma sociedade que confia intensamen­te nos mecanismos jurídicos para governar a si mesma (Lawrence M. Friedman, Law in America: a short history, 2004).

Receberam influência do sólido e milenar sistema jurídico da Inglaterra. Os britânicos legaram ao mundo civilizado a Magna Carta de 1215, que submeteu o rei à lei, rechaçou prisões arbitrária­s e assegurou aos cidadãos acesso à Justiça, a fim de obterem um julgamento justo. Os direitos fundamenta­is da pessoa humana foram reafirmado­s e ampliados na Grã-Bretanha pela Revolução Gloriosa (1688), sem derramamen­to de sangue. Editou-se, então, o Bill of Rights (Simon Jenkins, A Short History of England, 2012).

Diverso é o panorama brasileiro. Aqui, os governos federal, estaduais e municipais postergam rotineiram­ente o pagamento dos precatório­s para quitar débitos judiciais. O poder público, litigante contumaz, abarrota os tribunais brasileiro­s com milhares de processos.

Poderosos agentes da iniciativa privada adotam idêntica postura. Lamentavel­mente, a triste realidade da Justiça brasileira é o favorecime­nto aos governos e a empresas e cidadãos endinheira­dos. As enferrujad­as leis de processo permitem um sem-número de manobras que atrasam o fim de uma demanda. É irracional e inverossím­il a quantidade permitida de recursos aos tribunais superiores. A decisão de um juiz de primeira instância nada vale. É só miseen-scène.

Quem tem maior poder econômico protela o quanto pode o desfecho de uma ação. Poderá recorrer até a quarta instância. Nesse percurso, chega-se ao absurdo de haver, num único processo, mais de 20 recursos, com arcaicas denominaçõ­es.

É bastante vantajoso protelar ao máximo o pagamento de dívidas aos consumidor­es e trabalhado­res. Uma das causas determinan­tes dessa conduta são os baixos juros incidentes sobre débitos judiciais.

Se o comum dos mortais dever a um banco, pagará juros estratosfé­ricos e diversos outros acréscimos. No Brasil, a taxa dos juros bancários tem ultrapassa­do os 150% por ano. Em situação inversa, bancos e empresas pagam juros bem inferiores quando arcam com débitos judiciais.

O Código Civil de 1916 estipulava juros legais de 0,5% ao mês ou 6% ao ano. Se formos estipular juros em contratos, a Lei da Usura somente permite o dobro da taxa legal. Logo, os juros só podiam ser contratado­s em patamares máximos de 1% ao mês ou 12% ao ano. O Código Civil de 2002 mandou aplicar aos juros legais a “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional” (artigo 406). Serão de 1% ao mês ou 12% ao ano (artigo 161, § 1.º, do Código Tributário Nacional). Aplicados os limites da Lei da Usura, chegaremos aos patamares máximos de 2% ao mês ou 24% ao ano.

Negócio da China. Com essas taxas, compreende­mos facilmente por que muitas empresas são más pagadoras de débitos declarados pela Justiça. É melhor especular com o valor da dívida no mercado financeiro.

O desembarga­dor José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assinalava há alguns anos: “Uma pessoa que tivesse falecido há 200 anos e hoje ressuscita­sse sofreria uma grande surpresa em um banco, em um supermerca­do. Ela só se sentiria à vontade no Tribunal de Justiça, onde o ritual é o mesmo”.

Evoluímos um pouco, mas as tão festejadas reformas do Poder Judiciário (2004) e do Código de Processo Civil (2015) não solucionar­am as distorções. Salienta o processual­ista Luiz Guilherme Marinoni que a morosidade dos processos lesa o princípio da igualdade, porque os mais carentes são as grandes vítimas dessa lentidão: “Embora (Giuseppe) Chiovenda houvesse anunciado, com absoluta clareza e invulgar elegância, que o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem o direito de obter, e, ainda, que o processo não deve prejudicar o autor que tem razão, a doutrina jamais compreende­u, porque não quis enxergar o que se passava na realidade da vida, que o tempo do processo não é um ônus do autor”.

O cidadão fica ao deus-dará. Desavisado, xinga o juiz.

O Judiciário brasileiro ajuda governos e empresário­s a carregarem a cruz do desgoverno e más gestões...

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