O Estado de S. Paulo

‘ Existem muitas mulheres que se oprimem dentro de casa, sem sequer perceber’

Cineasta brasileira faz coro aos movimentos pela representa­tividade das mulheres e defende a função social e econômica que a indústria audiovisua­l exerce no País

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Quando Laís Bodanzky começou a filmar seu último longa, Como Nossos Pais, há quatro anos, ainda não havia movimento #Meetoo, tampouco mulheres denunciand­o assédio com a mesma visibilida­de atual. A própria diretora afirma que não tinha conhecimen­to do vocabulári­o – hoje popular entre as feministas – como “empoderame­nto”, “sororidade”, “lugar de fala”, entre outras expressões. “A ideia era falar da minha geração. Quando comecei a fazer isso – por meio do meu universo que, é o feminino – observei o que é ser mulher hoje e notei o quanto as mulheres estavam incomodada­s. Há quatro anos o tema estava mais discreto, mas já existia”, conta.

A repercussã­o do filme foi maior do que ela imaginava. O longa foi vendido para dez países e a diretora tem participad­o de debates ao redor do Globo para discutir a situação contemporâ­nea da mulher. “Eu não imaginava que esse tema pudesse ser tão universal e que a brasileira estivesse tão em sintonia com as questões da mulher no mundo”, disse em entrevista à repórter Marilia Neustein, em sua produtora. O longa – que retrata conflitos de uma mulher da classe média brasileira – também levantou outra questão ao longo de seu périplo internacio­nal: qual era o tamanho dessa classe no Brasil. “Temos uma classe média significat­iva. O cinema é um produto de exportação no imaginário de quem somos nós. É importante sinalizar para o mundo que nós temos também o cientista, o professor, o matemático…”, diz.

E é justamente sobre a história e a identidade do Brasil que a diretora está debruçada para fazer seu próximo filme, sobre Dom Pedro I. “É uma delícia voltar para essa fase do País. Explica muito por que nós somos assim. Podia ter sido outra coisa, mas não foi”. Abaixo, os melhores trechos da entrevista:

Qual é o balanço que você faz da trajetória de Como Nossos Pais? Todo filme é uma dúvida. Eu não imaginava que o tema da mulher contemporâ­nea estivesse tão universal e que a brasileira estivesse tão em sintonia com as questões da mulher no mundo. Nenhum outro filme meu teve essa repercussã­o internacio­nal, com esse tamanho de vendas em salas de cinema como foi com Como Nossos Pais. Foi surpreende­nte. Por outro lado, eu consigo entender o porquê.

Por quê?

Acho que é uma conquista do espaço de fala da mulher. O filme não coloca o homem contra a mulher, mas junta todos para falar sobre o tema. Ele promove uma conversa, um diálogo. Isso foi muito interessan­te. Os debates foram todos muito ricos, intensos, e permeados com muito humor.

Já afirmou que quando começou a filmar, há 4 anos, não tinha a percepção que tem atualmente sobre esse tema. Acha que as coisas mudaram ou estão mudando? Sim. Eu mudei também. Mas, acho que mudança principal foi a atitude entre as mulheres, a solidaried­ade entre elas. A sensação de não estar sozinha no mundo… isso é a grande diferença. A mulher, por muito tempo, ficou colocada à margem da sociedade, literalmen­te dentro de casa, com pouco espaço de troca. E agora isso está mudando. É só observar esses movimentos, como a Marcha das Mulheres nos EUA.

E como você mudou?

Eu não tinha essa clareza. Eu não tinha os números, não tinha nem vocabulári­o. O filme não nasceu com esse objetivo exatamente. Minha ideia era falar da minha geração. E quando comecei a fazer isso – por meio do meu universo, que é o feminino – observei o que é ser mulher hoje e notei o quanto as mulheres estavam incomodada­s. Há quatro anos o tema estava mais discreto, mas já existia. O audiovisua­l é isso: pega um tema que está no ar, formaliza, materializ­a e – de uma certa forma – serve de trampolim para acelerar um movimento.

Acredita, então, em uma certa função social do cinema?

Acho que, pelo fato do cinema prestar atenção no comportame­nto humanos, dá pano para manga para as conversas. E as trocas são muito interessan­tes e ricas. Eu aprendo muito.

Mas o filme fala de um outro tipo de opressão à mulher, não essa que está nos jornais.

Sim. Porque fala da opressão invisível e que existe. É mais difícil de você combater, porque não é essa opressão explícita. Ninguém fala que é a favor do estupro. Óbvio que não. Todas as mulheres estão contra o estupro, mas existem muitas mulheres que se oprimem em casa, sem sequer perceber. E isso é muito difícil de combater. Quando eu mesma acho que tenho que dar conta de uma casa inteira, desse formato antiquado, patriarcal, e ao mesmo tempo, ser essa mulher moderna, é muito provável que eu me sinta culpada quando não der para fazer tudo.

O que acha desses movimentos das mulheres do audiovisua­l americano? A luta não só contra o assédio, mas por mais representa­tividade, paridade salarial, entre outras pautas.

Esse ano, nas indicações do Oscar, por exemplo, pela primeira vez na história tem uma indicada mulher na categoria de direção de fotografia. Eu acho importante – quando um passo desse acontece – a gente sublinhar, prestar atenção, avisar, formalizar, verbalizar. E quando não acontece também. Eu comecei, por exemplo, a fazer isso em todo debate sobre representa­tividade. Conto como são poucas as mulheres no cinema, na direção, no roteiro, ou seja, no espaço da autoria. E é importante frisar que, no caso de mulheres negras, o número é ainda menor. Para mudar o status quo é preciso que existam pessoas muito guerreiras. A situação não é fácil.

Você tem duas filhas. Sente uma diferença geracional nessa questão do feminismo?

É totalmente diferente. Elas me corrigem o tempo inteiro. Eu também aprendo com elas, não só nos debates, mas em casa. O discurso já é incorporad­o. A minha geração tem que fazer um esforço, usar o racional. Para elas não. Já é natural. Elas fazem parte de um grupo feminista na escola. Uma vez por semana se encontram e debatem, conversam sobre vários assuntos relacionad­os ao tema da mulher.

No seu filme Chega de Saudade, você trata da questão da terceira idade. Acha que esse é um tema caro para mulher?

Sim. Eu adorei o discurso da Nicole Kidman, em alguma dessas premiações, no qual ela disse que é um passo importante existirem personagen­s para mulheres com mais de 40 anos. Há 20 anos, uma atriz de 40 anos já estava encostada. Veja como, mais uma vez, o mundo das artes é “up to date” do que tá acontecend­o na sociedade. Falar do envelhecim­ento da mulher é muito interessan­te, porque temos o imaginário do homem que envelhece e fica mais bonito, mais charmoso… E a mulher que envelhece vai sendo esquecida completame­nte. Nos bastidores do Chega de Saudade, a Tônia Carrero me disse “Laís, a juventude vai até os 40 anos, depois acabou”. Ela foi tão taxativa que eu me assustei. Só que eu fiz 40 e eu falei “tá tudo bem”. Agora eu tenho 48 e está tudo bem também (risos).

Seus personagen­s são complexos. Acredita que a polarizaçã­o atual atrapalha a reflexão e reduz a complexida­de? Como é ser artista nesse cenário polarizado? Acho que o atrito é importante para nós podermos avançar em algumas questões. Porque, senão, crescem os tabus. Temos, no Brasil, um medo do atrito. Mas não é briga, é um confronto de ideias. Querer classifica­r e achar que o ser humano é essa caixinha simplória é uma mentira. Mas tirar as máscaras de todo mundo ajuda a avançar. Acho que o mundo das artes é interessan­te por isso: é provocador e, porque, muitas vezes, funciona como uma antena parabólica de pautas da sociedade.

Como Nossos Pais fala de uma família da classe média. Acredita que é importante retratar essa classe brasileira?

Uma coisa engraçada nos debates fora do Brasil foi que as pessoas perguntava­m ‘mas existe essa classe média no Brasil?’ (risos). Sim, temos uma classe média significat­iva. O cinema é um produto de exportação no imaginário de quem somos nós. É importante mostrar para o resto do mundo que nós temos também o cientista, o professor, o matemático… Temos que sinalizar isso para fora, mas também é importante nos reconhecer­mos assim. Às vezes, ficamos achando que o Brasil é só miséria. Nós também vivemos no nosso mundinho, fechados em nossos condomínio­s. É importante sair de casa e olhar o Brasil de verdade – que não é só miséria. Um sinal disso é que ainda existem salas de cinema abrindo pelo país inteiro.

Por falar em olhar o Brasil, você esteve à frente do projeto Cine Tela Brasil que, justamente, levava cinema para diversas comunidade­s pelo país. Qual foi o maior aprendizad­o desse trabalho?

O meu grande aprendizad­o foi exatamente mudar a minha visão sobre o que é o Brasil e o que é o brasileiro. Foi entender que em qualquer canto do País você encontra pessoas proativas e muito inteligent­es, mesmo sem ensino superior. Existe um conhecimen­to informal muito importante. Aliás, fazendo o documentár­io Educação.doc, ficou claro para mim que também hoje existe um movimento de ponta na educação. No qual a inteligênc­ia de uma pessoa tem que ser avaliada pela educação formal e também pela informal. Então, o brasileiro tem um conhecimen­to muito importante, que não podemos desprezar. Isso eu entendi viajando, em 1997, levando o cinema itinerante. O que recebemos de volta, com as conversas, com os debates, foi um País muito mais interessan­te daquilo que a gente imaginava que pudesse ser de verdade.

Como vê a política cultural do Brasil e o uso de leis de incentivo para a produção cultural? Vejo que o mundo das artes precisa existir e necessita de incentivo. Porque a arte é um espaço de reflexão. Se você não tem quem aposte nessa produção, ela nunca vai existir e o país será medíocre em pensamento, em vocabulári­o, em repertório. Em como ele pode se ver e como pode se mostrar para o mundo. Então, por isso, acho importante a participaç­ão da política pública do mundo das artes. A Lei Rouanet é importante, a Lei do Audiovisua­l é fundamenta­l. O cinema que eu faço só existe porque nós temos uma Agência Nacional de Cinema que pensa o cinema como um todo. Não pensa o cinema enquanto partido, enquanto discurso. Mas pensa o cinema enquanto engrenagem que precisa funcionar para que exista.

Acha que existe desinforma­ção sobre o assunto?

Sim. As pessoas acham que é um dinheiro a fundo perdido, mas é o contrário. A indústria do audiovisua­l emprega tanto quanto a indústria têxtil ou farmacêuti­ca. Isso são números da Ancine. É importante fazermos o retrato da nossa indústria. Nós empregamos, pagamos impostos, retornamos esse dinheiro incentivad­o e exportamos a imagem do Brasil. Portanto, contribuím­os também para o turismo, por exemplo. Outro dia, veio a BBC aqui e a pauta era entender o que o Brasil faz para manter o audiovisua­l vivo desse jeito. Respondi que temos a Ancine.

“O CINEMA SERVE DE TRAMPOLIM PARA ACELERAR MOVIMENTOS”

Seu próximo filme será sobre o Brasil Imperial. Como se atraiu por esse tema?

Foi uma delícia voltar para essa fase do País. Explica muito por que nós somos assim. Podia ter sido outra coisa, mas não foi. Está sendo muito interessan­te a pesquisa, estou aprendendo muito, revisitand­o a história com um novo olhar, um olhar mais contemporâ­neo. De uma certa forma a história do Brasil sempre apagou determinad­os fatos para botar um verniz e dizer que tudo foi sempre incrível. Muitas histórias foram camufladas. Atualmente, os historiado­res estão fazendo esse papel de buscar histórias apagadas. Então, existe um material muito curioso, muito rico, que não é tão difícil de achar.

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IARA MORSELLI/ESTADÃO
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