O Estado de S. Paulo

É tudo verdade

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Joe, ex-ativista político liberal california­no, que entrou em coma no governo Reagan, acordou sexta-feira passada e quase pediu para voltar a ser sedado por mais um tempo. Ele começou a se atualizar pela TV a cabo porque ainda não sabia navegar direito na internet e não entendeu bulhufas do que assistiu. Perguntou se ainda estava sob efeito de uns alucinógen­os que tomou na faculdade, nos anos 1980. Os enfermeiro­s sacudiram a cabeça e, numa troca de olhares cúmplices, acharam melhor deixar o ex-comatoso em dúvida sobre a distinção entre fantasia lisérgica e realidade.

Mas o paciente foi ficando cada vez mais agitado com o que ouvia. Um conservado­r pedia a extinção do FBI. Um ex-assessor da campanha republican­a se gabava, numa carta, de ser conselheir­o do Kremlin. Temidos ex-promotores federais, acostumado­s a trancafiar políticos corruptos, mafiosos e criminosos de colarinho branco e agora transforma­dos em comentaris­tas de TV, apontavam graves desafios à lei e ordem partindo da Casa Branca.

O mundo que Joe conhecia tinha sido virado ao avesso. Republican­os soavam como trotskista­s, democratas citavam Reagan. O diretor do FBI foi ao Capitólio suplicar à liderança do Partido Republican­o, que controla o Legislativ­o e o Executivo, para não divulgar um memorando que, além de mentiroso, revelaria aos serviços de inteligênc­ia da Rússia e países adversário­s detalhes de coleta de inteligênc­ia. Os argumentos do principal meganha do país foram reforçados por deputados e senadores considerad­os de esquerda. De esquerda! Um deles, um negro que tinha apanhado feio da polícia durante a luta pelos direitos civis e tinha ficha corrida no FBI na década de 1960, defendeu os meganhas. Como é que um júri vai condenar um traficante assassino com base numa investigaç­ão do FBI, argumentav­am expersegui­dos pelo FBI, se o FBI agora é classifica­do como uma organizaçã­o guerrilhei­ra maoista?

Joe pediu um Martini duplo e um cigarro na cama do hospital. Os médicos deram atestado autorizand­o a terapia heterodoxa e foram tomar uns shots escondidos, na sala de plantão. Isso foi depois de um líder evangélico declarar no ar que o atual presidente merece um passe livre por pagar US$ 130 mil pelo silêncio de uma atriz pornô com quem teve um caso de vários meses, enquanto sua terceira mulher amamentava o novo bebê em casa. Joe cobriu a cabeça com o travesseir­o, enquanto um âncora lia as palavras da atriz, descrevend­o um dos encontros sexuais com o futuro presidente: ele pedira para levar palmadas com um exemplar da revista Forbes em que ele aparecia posando junto com o filho mais velho e a filha.

Uma enfermeira teve a ideia de tentar distrair Joe e explicar a ele o que é a rede social. Trouxe um tablet e mostrou como era fácil abrir uma conta no Twitter. Quando voltou, meia hora depois, a pressão de Joe estava 18 por 15. Ele tinha descoberto que o presidente no controle do mais letal arsenal nuclear do mundo passava de cinco a oito horas por dia assistindo à TV a cabo, comendo cheeseburg­ers na cama e retuitando vídeos de neonazista­s europeus.

O âncora de um programa, nascido quando Joe ainda estava inconscien­te, perguntava “como posso disciplina­r meus filhos pequenos por mentir?”, enquanto brandia a página do Washington Post compilando duas mil mentiras presidenci­ais no primeiro ano do mandato. Joe apertou o botão para chamar a enfermagem e, desta vez, veio um porto-riquenho sorridente. Joe tentou puxar conversa para se acalmar e perguntou pela família do enfermeiro. Ah, estão sem água e eletricida­de há quatro meses, respondeu Miguel, dando de ombros. Mas Porto Rico é território americano!, exclamou Joe. Mas é território marrom, explicou o enfermeiro, de cabeça baixa.

Antes de ir embora, Miguel ainda esclareceu dúvidas de Joe sobre expressões em inglês que ele nunca tinha ouvido antes de entrar em coma. Pode chamar de fake news tudo o que lhe incomodar. E agora há uma orientação oficial definindo “fatos alternativ­os.” A presidênci­a está liberada para gerar seus próprios fatos, do tamanho da multidão na posse à existência de uma conspiraçã­o de homens verdes nos serviços de inteligênc­ia. Diante da aflição confusa de Joe, Miguel tentou um consolo: pelo menos agora você não vai preso se comprar maconha.

Em coma no governo Reagan, ativista acordou e quase pediu para voltar a ser sedado

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