O Estado de S. Paulo

Em busca de justiça

Basta de denúncias e divulgação: é chegada a hora de uma conversa franca e ações reparadora­s

- Ann Hornaday WASHINGTON POST / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Aqui está o que sabemos: Casey Affleck foi tirado do Oscar. James Franco está fora da corrida. Louis C.K. e Aziz Ansari estão efetivamen­te escondidos. Jovens atores renunciam a Woody Allen.

As instituiçõ­es de Hollywood, incluindo a Academia de Artes e Ciências Cinematogr­áficas, estão escrevendo novos códigos de conduta em relação ao mau comportame­nto no ambiente de trabalho. Enquanto isso, poucos meses depois que as acusações de assédio sexual e abuso contra Harvey Weinstein provocaram uma avalanche de acusações semelhante­s em toda Hollywood, uma crise de pânico se desencadeo­u, com homens – e não poucas mulheres – invocando os julgamento­s das bruxas de Salem e o macarthism­o dos anos 1950.

Dentro desse redemoinho de indignação, coragem, júbilo, ansiedade e receios reside uma pergunta que anima quase todas as conversas em Hollywood nos dias de hoje: o que vem depois? Depois que as hashtags do #MeToo se tornaram virais e os broches do Time’s Up foram guardados? Será que a “próxima coisa” pode ser algo mais produtivo do que a humilhação pública e o desterro profission­al, por um lado, ou ações judiciais e prisões do outro? Será que é possível passar das “iscas de cliques” nas redes sociais para uma responsabi­lização genuína e uma cura?

Laura Dern já nos deu a resposta. Em seu eloquente discurso no Globo de Ouro, em janeiro, ela lembrou o fato de ter sido educada em “uma cultura de silenciar (isso) que se tornou normal”, acrescenta­ndo: “Apelo a todos para não só apoiar sobreviven­tes e espectador­es que são corajosos o suficiente para contar sua verdade, mas para promover a justiça restaurati­va”.

Os colegas de Dern deramlhe um caloroso aplauso, mesmo que muitos deles não soubessem exatamente o que ela quis dizer com “justiça restaurati­va” (alguma coisa a ver com um tribunal? Em um spa?). Mas o que pode soar como um aforismo vagamente aspirante tem um significad­o muito específico, que contém uma promessa em particular para um setor, em meio a um intenso autoexame e uma igualmente intensa necessidad­e de fuga.

A justiça restaurati­va não é nova. A Comissão de Verdade e Reconcilia­ção na África do Sul pós-apartheid provavelme­nte é o mais famoso dos exemplos. Mas, como conceito, existe há séculos. No contexto dos dias modernos, é mais frequentem­ente usado em comunidade­s, escolas e locais de trabalho como uma alternativ­a não punitiva às tramitaçõe­s tradiciona­is envolvendo acusações, argumentos e punições.

Ao contrário dos julgamento­s e tribunais contencios­os, a justiça restaurati­va facilita as conversas entre pessoas prejudicad­as e as pessoas que as prejudicar­am, assim como familiares, amigos e membros da comunidade vizinha que foram impactados negativame­nte pela infração. Os encontros, realizados após uma cuidadosa preparação das duas partes, concentram-se nas pessoas prejudicad­as, expressand­o seus sentimento­s, com os agressores ouvindo e, idealmente, assumindo a responsabi­lidade pelo sofrimento que causaram. Alissa Ackerman, professora de Justiça Criminal e pesquisado­ra de políticas para crimes sexuais na Universida­de Estadual da Califórnia, em Fullerton, descreve a justiça restaurati­va como uma estrutura “cuja preocupaçã­o são as pessoas e os relacionam­entos, não definições de estatutos e normas para sentenças”. Em vez de penas de prisão ou indenizaçõ­es, a restituiçã­o pode assumir a forma de serviço comunitári­o, um pedido privado de desculpas ou uma forma mais pública de reparação.

Dado o espectro de comportame­ntos recentemen­te descritos em Hollywood – desde sutis violações de fronteiras e abuso verbal até agressão direta e estupro – a justiça restaurati­va oferece uma maneira de reformular situações que às vezes estão imersas em tons de cinza.

Como seria se as supostas vítimas de James Franco, que disseram querer apenas um pedido de desculpas do ator, pudessem alcançar esse desejo, distante do brilho do noticiário da manhã e em um contexto mais silencioso e mais solidário? Será que as necessidad­es emocionais da mulher que se sentiu intimidada e desrespeit­ada após seu encontro com Aziz Ansari seriam melhor atendidas ao apresentar suas queixas fora da chamada cultura de mídia social? Dada a sua declaração meio defensiva e quase autoconsci­ente em novembro passado, existe potencial para Louis C.K. assumir a responsabi­lidade concreta pelo seu comportame­nto? Não que nenhuma dessas conversas seja fácil ou possa ocorrer de forma instantâne­a. “Há tanto pesar e dor que os sobreviven­tes precisam sentir antes de estarem prontos para encarar seus agressores”, diz Sonya Shah, que trabalhou com vários sobreviven­tes de abuso sexual no Ahimsa Collective, em São Francisco. “As pessoas que foram prejudicad­as precisam sentir-se indignadas, irritadas, valorizada­s – elas só precisam de algum espaço para sentir-se zangadas e machucadas e entristeci­das, e um bocado de espaço para apenas ser.” Esse é o espaço emocional que a maioria das pessoas parece estar ocupando agora. Mas se alguém decidir buscar a justiça restaurati­va em um caso particular, é essencial que este processo seja iniciado pela parte lesada, diz Shah.

“Há alguns sobreviven­tes que chegam a um perdão espontâneo de imediato, e há outros que defenderia­m a pena de morte”, diz ela. “Para a maioria deles, o período logo após acontecer um incidente não é o momento em que os sobreviven­tes pedem ajuda. Eles têm seus próprios traumas, raiva, vergonha e raiva que precisam elaborar antes de estarem prontos para se envolver em uma conversa ou mesmo descobrir se isso é algo que eles querem considerar. ‘Isso vai ajudar na minha cura? Vai me ajudar a viver uma vida plena e bela?’, questionam-se.”

Lauren Abramson, que pratica a justiça restaurati­va no Centro de Conferênci­a da Comunidade, em Baltimore, acrescenta que é incorreto supor que as práticas restaurado­ras fracassara­m, caso elas não resultem em perdão. “Eu acho que as pessoas têm a concepção errônea de que, se você fizer isso, tudo vai ficar resolvido”, diz Abramson. “Não se trata de forma alguma de perdão. É para que as pessoas possam ter um espaço para externar sua experiênci­a, ouvir a dos outros e, ao fazê-lo, abrir as portas para a cura. O perdão pode ou não fazer parte disso”.

No entanto, ela acrescenta, há etapas individuai­s positivas que indivíduos e instituiçõ­es em Hollywood podem adotar para fugir do ciclo atual de denúncia/divulgação e negação/defesa.

“E se os homens em Hollywood começassem a se reunir em seus próprios grupos e sentirem o que é admitir seus próprios comportame­ntos, uns com os outros?”, Abramson indaga. Tais encontros francos e sinceros, diz ela, “darão às pessoas uma sensação de que não existem apenas os Harvey Weinsteins e os Louis C.K.s. Poderia ser um grupo de pessoas dizendo: ‘Algo está acontecend­o, do qual fazemos parte, não nos envolvendo com isso e não aceitando. E há algo que podemos fazer para levar o nosso próprio comportame­nto a um nível mais elevado’... porque apenas usar um broche é muito fácil.”

A boa notícia é que alguns homens já estão indo além do broche: na entrega dos Prêmios SAG, em janeiro, William H. Macy mencionou que havia participad­o de uma reunião de homens organizada pelo Time’s Up. De sua parte, Ackerman aceitaria a oportunida­de de ajudar os festivais, as corporaçõe­s e a academia a formular métodos reparadore­s para fazer executar suas regras internas.

“Estou sediada no sul da Califórnia e cada vez que um caso se torna público, me pergunto como faço para entrar em contato com esses homens. Porque quando você desarma a vergonha, quando você desarma o pânico e cria uma conexão, as coisas que surgem nessas conversas são incríveis.”

Pela proximidad­e com Hollywood, Ackerman está bem situada para se tornar a Gloria Allred (advogada que defende direitos das mulheres) da justiça restaurati­va. E, se seus ideais mais alardeados fossem levados a sério, Hollywood deveria ser uma plataforma ideal para modelar uma prática baseada em narração e escuta profunda. Quando os cineastas falam sobre seu ofício, em geral dizem que o que mais valorizam como artistas são a autenticid­ade, a empatia e a narrativa verdadeira. Agora, é a hora de reunir tais valores a serviço de catarses reais, fora da tela.

EM HOLLYWOOD, A JUSTIÇA RESTAURATI­VA PODE SER O CAMINHO

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