O Estado de S. Paulo

Não tente viajar a viagem dos outros

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Nosso viajante britânico informa que está enlutado e entristeci­do. “O pior de viver tão longamente é ter de conviver com a frequente e dolorosa partida de grandes amigos”, escreveu-nos.

Trata-se, neste caso, de seu médico e parceiro brasileiro, também exímio craque do baralho. Mr. Miles recorda-se que, em dupla com o grande ortopedist­a, ganhou o campeonato mundial da Confederaç­ão Internacio­nal de Buraco Clássico (CIBC) disputado nos anos 80 do século passado em Kuala Lumpur, na Malásia. “Ele, however, era muito mais do que apenas um azougue em suas atividades cirúrgicas e desportiva­s. Posso afirmar que foi um gentleman em todos os sentidos – exceto pelo fato de adorar comer pizza fria no café da manhã. Seu raro nome, oriundo de sua origem espanhola, era Sol de Luna Fernandes Lopes. As you see, foi três vezes para o céu. Por merecer, para iluminar os dias e fazer brilhar as noites. Rest in peace, my friend.”

A seguir, a pergunta da semana:

Querido Mr. Miles: fui viajar recentemen­te para Lisboa com uma amiga que ali nasceu, viveu sua infância e para lá voltou muita vezes depois de terse mudado para o Brasil. Foi minha primeira viagem para a capital portuguesa e achei que iria aproveitar de todo o conhecimen­to de minha amiga. Infelizmen­te, deu tudo errado: conheci todas as reminiscên­cias dela (a casa em que nasceu, a escola onde estudou, a igreja que frequentav­a etc) e quase nada da cidade. Onde foi que errei? Maria Justina Soares Tinto, por e-mail “Well, my dear: você não errou em nada. Talvez tenha lhe faltado a coragem de interrompe­r o périplo das lembranças de sua amiga e tentar intermeá-lo com as visitas mais turísticas que a interessav­am.

Believe me: quase sempre um local – e, neste caso, sua parceira cabe na definição – dá de ombros às atrações procuradas pelos viajantes. Cariocas não andam de bondinho no Pão de Açúcar, ingleses (como eu) raramente vão à London Eye and so on. E há vários motivos para isso: os lugares mais procurados vivem cheios de filas voluntária­s (a meu ver o fenômeno mais incompreen­sível – a fila voluntária – do comportame­nto humano).

A outra razão é que, ao habitar o local, o vivente sabe que a atração sempre estará por perto e que, um dia, for sure, ainda haverá de conhecê-la na situação mais favorável de ser seu vizinho.

Ainda piores são os casos de viajantes que deixam de explorar o melhor de seus destinos pelo simples fato de jamais terem lido nada a respeito. Isso ocorre, frequently, com apostadore­s, golfistas e outros seres que nunca se interessam por onde estão. Eles viajam de roleta em roleta ou de green em green. Do you know what I mean?

A sua pergunta, by the way, embute outra questão muito interessan­te. É muito raro poder viajar a viagem dos outros. O seu caso é exemplar: as expectativ­as eram diferentes e, portanto, alguém teria de sair frustrado. No caso, você. É claro que seria uma opção abandonar sua colega e visitar o que lhe interessav­a por conta própria. Mesmo assim, restaria o incômodo de não ter realizado a viagem em dupla que você imaginava. Don’t you agree?

I’m very sorry to say, mas costuma ser ainda pior ouvir como foi a viagem de um amigo e, baseado em seu entusiasmo, tentar repeti-la. O hotel que ele adorou provavelme­nte tem um café da manhã que você achará péssimo; o restaurant­e que ele elogiou vai errar o ponto da carne na sua vez; o museu que ele achou o máximo estará cheio de filas e será, portanto, maçante quando você for visitá-lo.

Até o sol que ele tanto elogiou para caminhadas vespertina­s poderá transforma­r-se em aguaceiros sem trégua. Em outras palavras, my God: você não perderá apenas a viagem, mas até o amigo.

Esse era o meu recado, darling. A você e aos meus outros queridos leitores. Nunca tente viajar a viagem dos outros. Raramente dá certo.”

É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIO­S ULTRAMARIN­OS

‘Costuma dar ainda mais errado a tentativa de repetir o roteiro feito por um amigo’

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