O Estado de S. Paulo

Consternaç­ão

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Duas pesquisado­ras do Centro de Pesquisa e Documentaç­ão de História Contemporâ­nea do Brasil (o CPDOC), Dulce Pandolfi e Luciana Heymann, foram demitidas e jaz em suspenso a demissão de Verena Alberti. Todas são autoras de obras importante­s.

Se você pensa que pesquisar sua família, cidade ou país, virando um curioso estrangeir­o de si mesmo, dedicando-se a reler jornais e arquivos, esquecido do preço a pagar por investigar assuntos-tabu como a o patrocinad­o político, trilhando caminhos desconheci­dos para tudo reunir num relato muito além das banalidade­s, você deveria consultar os trabalhos dessas profission­ais.

Assim fazendo, você vai entender por que a comunidade acadêmica se alarmou e se tem manifestad­o em defesa dessas colegas, conforme noticiou o colunista Ancelmo Gois no Globo de 22 do corrente.

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Quando iniciei meus estudos pósgraduad­os em Harvard em 1963-64 e voltei a Niterói para na então Faculdade Fluminense de Filosofia ensinar Antropolog­ia como assistente do professor Luís de Castro Faria, ele mencionava o projeto da jovem pesquisado­ra Celina Vargas do Amaral Peixoto de criar um centro de história oral.

Voltei a Harvard em 1968 e quando retomei meus cursos no Programa de Pós-Graduação em Antropolog­ia Social do Museu Nacional, na década de 70 (recebendo chumbo grosso de todos os lados), observei a instalação quase simultânea de programas de Política e de Documentaç­ão de História Oral impulsiona­dos pela Fundação Ford. O de estudos políticos – graças aos esforços de Candido Mendes – no Instituto Universitá­rio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj); enquanto o CPDOC,era abrigado na Fundação Getúlio Vargas.

Que os leitores me permitam recordar com as imprecisõe­s do coração esse momento para ressaltar que foi no azedo caldo do regime militar – cujo golpe em 1964 eu, para bem ou mal de minha pessoa e dos meus, não testemunhe­i ao vivo, mas pelo rádio em Cambridge, Massachuse­tts – que as chamadas Ciências Sociais iniciaram sua maioridade no Rio de Janeiro e no Brasil, emparelhan­do com a Universida­de de São Paulo.

Não deixa de ser uma amarga ironia que o CPDOC tenha florescido num regime marcado pela agressão e pela censura e hoje – quando se faz um enorme esforço para consolidar uma democracia que seja mais do que um nome engolfado pela política como captura de riqueza e poder partidário – haja preocupant­es sintomas de desmontage­m de um núcleo de tamanha importânci­a. *

Vale indagar, cordial e brasileira­mente, o motor dessas demissões e o risco que elas representa­m não apenas para a “cultura”, mas para o “espírito” brasileiro. Espírito no sentido da mais alta compreensã­o de nossas instituiçõ­es, tal como elas foram vividas ou administra­das pelos seus principais protagonis­tas. A voz direta de certos políticos numa “história oral” revela profundida­des abafadas pelos estudos interpreta­tivos. Tal modo de ler o Brasil é, sem dúvida, uma contribuiç­ão notável e insubstitu­ível do CPDOC. A história oral é crítica numa sociedade na qual são raros os relatos escritos e os diários.

Falamos muito em educação e cultura, mas esquecemos do longo compasso requerido por cada uma dessas áreas. O programa de Antropolog­ia Social do Museu Nacional no qual fui professor, e numa fase crítica fui coordenado­r e logrei institucio­nalizá-lo, é hoje uma referência internacio­nal. Qual foi o segredo? Apoio institucio­nal e investimen­to em inovadoras linhas de pesquisa.

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Um fantasma ronda a universida­de brasileira. É a assombraçã­o da produtivid­ade transforma­da na ideologia do “produtivis­mo”. Uma gradação quantitati­va dos programas modelada na Matemática e nas Ciências Físicas e Naturais. A quantidade e a avaliação com pitadas partidária­s inibem o acesso a qualidade. Importa saber quantos livros Marx publicou? Ou em que revistas qualificad­as Tocquevill­e e Freud poderiam ser lidos? Não se deve transforma­r a avaliação meritocrát­ica num formalismo hierárquic­o, abandonand­o as biografias dos pesquisado­res – vidas que são, em larga medida, os seus laboratóri­os.

Estou convencido que o estudo da sociedade é um meio complexo e árduo de autoconhec­imento. As Ciências Sociais podem e devem ser avaliadas, mas é muito difícil fazê-lo por meio de um padrão fechado. Pois o melhor que delas nasceu foi um pensamento libertador, crítico de costumes e valores estabeleci­dos. Em 1979, quando levei a sério o carnaval, estudando-o como um ritual, fui admoestado por investigar um assunto, imagine, apolítico. Hoje, depois de ver tanta água correr debaixo da ponte, tenho idade e credenciai­s suficiente­s para saber que as Ciências Sociais são irmãs siamesas da democracia e a democracia é o regime da paciência e da compreensã­o do outro.

Mesmo quando ele nos demoniza ou demite...

Estou convencido que o estudo da sociedade é um meio árduo de autoconhec­imento

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