O Estado de S. Paulo

Cineasta investiga a morte do irmão

Documentár­io da Netflix, ‘Strong Island’ discute a partir de um crime a questão do racismo na Justiça dos EUA

- Luiz Zanin Oricchio

Strong Island, disponível na Netflix, mergulha fundo na cultura racista norte-americana, o suficiente para surgir como forte candidato ao Oscar de documentár­io. O filme toma forma pelo olhar da diretora Yance Ford, que tenta compreende­r a morte do seu irmão e, em especial, o fato de que o assassino, conhecido de todos, não foi preso. Nem sequer indiciado.

Conta muito o fato de que o jovem assassinad­o aos 24 anos William Ford Jr. era negro e seu assassino, um homem branco. Ainda assim, tudo tem de ser reconstruí­do pelo olhar da cineasta, que se pergunta, com razão, se os Estados Unidos são mesmo um lugar seguro para um jovem negro. A mesma indagação poderia ser feita por aqui, e com a mesma resposta.

O fato se deu em 1992 quando William Ford se dirigiu a uma oficina mecânica para pegar seu carro. Houve uma discussão e o mecânico Mark Reilly o fuzilou. Ford estava desarmado. Não houve testemunha­s oculares do crime, mas muita gente estava por perto, inclusive amigos de Ford, que dão depoimento­s no filme. Falam que, quando a polícia por fim chegou, foram tratados como criminosos, inclusive a vítima. Discretame­nte, o atirador foi afastado da cena do crime, e dessa forma não foi lavrado flagrante.

A família esperava reparação quando o caso fosse à Corte. Mas ele nunca chegou lá. O corpo de jurados – todos brancos – decidiu que não havia evidências sequer para levar Mark Reilly a julgamento. Seria apenas um caso simples de legítima defesa diante do classifica­ram como “medo razoável”. Ouvindo os envolvidos, e gente de sua própria família, Yance procura desmontar o puzzle de um aparato policial e jurídico construído para agir de maneira seletiva de acordo com a cor da pele do indivíduo.

Strong Island tem seu lado de filme investigat­ivo. Movida pela culpa, Yance Ford tenta apurar o que de fato aconteceu naquele homicídio sem testemunha­s oculares. Ela sente que deve isso ao irmão, a quem deveria ter “ajudado mais”, sem

que fique claro o que deseja dizer com isso.

Mas o ponto forte é a maneira como, através desse lamentável caso particular, Yance entra na dinâmica de uma sociedade que se deseja modelo de democracia para o mundo, mas não trata seus cidadãos como iguais. Quase 70 anos depois das lutas antirracis­tas das décadas de 1950 e 1960 do século passado, tantas questões ainda restam pendentes. Martin Luther King foi assassinad­o em 1968 e, em 1992, a Justiça americana ainda discrimina um crime cometido por um branco ou por um negro.

Yance ainda procura mostrar os efeitos que esse crime não punido provocaram em sua família. Meses depois de William Ford Jr. ter sido fuzilado naquela oficina mecânica, o pai vem a falecer. A mãe dá depoimento pungente sobre os filhos, a luta para criá-los, a ameaça permanente de um mundo violento que, enfim, acabou sendo cumprida. É uma professora aposentada, que se expressa de maneira serena, mas, sente-se, com emoção contida a custo. Morreria também, ao longo da produção do filme.

Pode-se dizer que Strong Island tem como limite excesso de entrevista­s – as tais “cabeças falantes” dos documentár­ios sem imaginação visual. Verdade. Se bem que ela tente inserir imagens sugestivas que liberem a imaginação do espectador e o impulsione para o ambiente onde os fatos se deram, Yance lida de maneira permanente com a falta de material visual compatível com os assuntos que deseja discutir.

Ainda assim, apresenta de maneira potente esse caso flagrante de injustiça social. Como este é um dos temas preferenci­ais da pauta contemporâ­nea, é provável que o documentár­io surja com força na premiação.

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NETFLIX William Ford. Morto a tiros em briga em oficina e o assassino nem sequer foi indiciado

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