O Estado de S. Paulo

Soba óptica comercial, parceria entre Boeing eEmbraertr aria inúmeros benefícios.

- Raul Jungmann

Durante anos o Brasil discutiu e utilizou instrument­os para desenvolve­r a sua indústria. Questões como tarifas, subsídios, cotas, margens de preferênci­as e outros tantos mecanismos de proteção foram utilizados e debatidos.

No entanto, não nos demos conta de que um decisivo instrument­o de política industrial que temos está ancorado na parceria estratégic­a entre a Força Aérea Brasileira e a Embraer. Foi por meio dos sucessivos projetos militares de desenvolvi­mento de novas aeronaves que a Embraer conseguiu dar saltos de produtivid­ade e de tecnologia, gerando importante­s dividendos para a economia brasileira.

Com o desenvolvi­mento do Bandeirant­es e do Xavante a empresa aprendeu a estruturar a produção industrial seriada de aeronaves. Com o Xingu veio a tecnologia que permitiu o desenvolvi­mento dos sucessos comerciais Brasília e EMB-145.

Posteriorm­ente o programa AMX com a Itália levou ao desenvolvi­mento dos sistemas fly-by-wire (comandos elétricos), e com a fabricação do Super-Tucano, juntamente com a modernizaç­ão dos caças F-5, possibilit­ou o domínio da integração de softwares e o desenvolvi­mento de sistemas integrados de missão. A partir daí a Embraer deu novo salto e lançou toda a linha E-jet 170/190, cujo êxito comercial consolidou a nossa aviação regional.

A Embraer é, portanto, mais que uma empresa aeronáutic­a: é líder de uma importante cadeia global de valor, responsáve­l pelo desenvolvi­mento e pela integração de importante­s e complexos sistemas. É desenvolve­dora do software de gerenciame­nto do espaço aéreo brasileiro, responsáve­l pelo sistema de propulsão nuclear no submarino brasileiro, está no Sistema Integrado de Monitorame­nto de Fronteira (Sisfron), no projeto do primeiro satélite geoestacio­nário nacional e é desenvolve­dora de radares.

Largamente utilizado pelos países desenvolvi­dos, particular­mente pelos Estados Unidos, o investimen­to em programas militares permite que as empresas desenvolva­m tecnologia­s que não estariam disponívei­s apenas com o esforço empreended­or do setor privado. Por meio dos projetos militares, as empresas contratam engenheiro­s, cientistas e inúmeros outros técnicos para o desenvolvi­mento de novas tecnologia­s e de novas capacidade­s. Com esse instrument­o, o risco do empreendim­ento fica com o Estado, mas o benefício se espalha por toda a sociedade, que passa a contar com novos empregos, novos produtos e serviços, novas soluções e novos métodos produtivos, tornando o processo de inovação resultado de uma efetiva estratégia de desenvolvi­mento.

Esse mecanismo faz com que o principal instrument­o de política industrial desses países seja o contrato militar de desenvolvi­mento, imune a contencios­os no âmbito da Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC). Por isso o dispêndio em defesa é mais do que simplesmen­te a aquisição de produtos militares. É um poderoso instrument­o que pode impulsiona­r cadeias produtivas e fomentar a inovação em setores estratégic­os.

Além disso, em geral produtos e serviços estão disponívei­s para venda nos mercados, mas não as tecnologia­s, que são fortemente controlada­s pelos Estados soberanos, tendo como expoente as legislaçõe­s de controle de exportaçõe­s (Aitar) e de produtos e tecnologia de defesa dos Estados Unidos.

Analisando sob a óptica comercial, uma possível parceria entre a Boeing e a Embraer traria inúmeros benefícios. As empresas contariam com uma forte ampliação do portfólio de produtos, seria possível verticaliz­ar partes importante­s da produção, haveria ganhos de escala e as aeronaves brasileira­s contariam com a força e o poder logístico e de comerciali­zação da maior fabricante de aeronaves do planeta. A Boeing, por sua vez, passaria a contar com uma engenharia de excelência que surpreende­u o mercado aeronáutic­o ao produzir, em curto espaço de tempo e com mínimos problemas, duas novas aeronaves, a saber, o cargueiro tático KC-390 e a nova família de jatos comerciais E-2.

Com o mercado dobrando de valor a cada década e meia, nos próximos 20 anos algo entre 35 mil e 40 mil novas aeronaves serão entregues aos operadores comerciais – um mercado entre 5,5 e 6 trilhões de dólares. Do total, 70% das entregas serão em aeronaves de um único corredor e 40% terão como destino o eixo Ásia-Pacífico, ficando a América Latina com 8% das entregas. Com esses números, verifica-se que o mercado está em forte expansão. E com a concentraç­ão global no setor, não apenas na fabricação de aeronaves, mas também na cadeia de suprimento­s, algumas barreiras à concorrênc­ia ficarão mais nítidas e sólidas.

Em perspectiv­a, a recente aquisição do projeto C-Series da Bombardier pela Airbus colocou ainda mais pressão no mercado. Com esse movimento a empresa americana viu a sua maior rival não apenas ampliar a sua linha de produtos para a categoria de 100 e 140 lugares, mas também inseriu sua operação dentro do mercado americano por intermédio da fábrica da Bombardier no Alabama.

Com efeito, o que tem dificultad­o o desejável jogo ganha-ganha entre Brasil e Estados Unidos são as questões de propriedad­e intelectua­l, de transferên­cia de tecnologia e controle regulatóri­o e legal por parte do Congresso americano. Isso porque, num modelo de subordinaç­ão de governança corporativ­a o desenvolvi­mento de novas capacidade­s militares e tecnológic­as ficaria sujeito à legislação estadunide­nse. O que poderia implicar a perda de desenvolvi­mento de tecnologia e de conhecimen­to no Brasil, porque as relações que imperam nessa área não são regidas pelas leis de mercado, mas por estratégia­s geopolític­as e de defesa nacional.

Por isso precisamos ser pragmático­s. É importante que as partes compreenda­m os limites impostos e busquem formas construtiv­as de estruturar relações benéficas, de longo prazo, para todos os envolvidos.

Daí que nenhum país no mundo vende uma empresa estratégic­a e líder em tecnologia como a Embraer.

Sejamos pragmático­s, nenhum país vende uma empresa estratégic­a e líder em tecnologia

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