O Estado de S. Paulo

Referência­s antigas para o horror dos tempos modernos

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Uma vida pela outra – é o que está em jogo neste estranho O Sacrifício do Cervo Sagrado, do grego Yorgos Lanthimos. Na verdade, mais que figuração primária da Lei de Talião, trata-se da releitura de Ifigênia, tragédia de Eurípedes, na qual Agamenon é obrigado a sacrificar uma filha por ter matado um cervo sagrado. Quem será ele no filme de Lanthimos, em sua versão contemporâ­nea do mito?

Colin Farrell é Steven, cardiologi­sta de Cincinnati. Aliás, o filme abre com um superclose sobre um coração aberto, o paciente adormecido na mesa de operações. Steven é um homem de sucesso, bem casado com a também médica Anna (Nicole Kidman), pai de um casal de filhos.

Com um viés não naturalist­a, Lanthimos trata do tema da responsabi­lidade e da reparação. O visual solene, com muitos planos longos e música impositiva em determinad­os momentos, cria uma atmosfera de mistério. Os atores são convidados a “não interpreta­r”, estabelece­ndo um tom de artificial­ismo que, neste caso, ajuda o reforço desse clima incômodo.

Mesmo porque Steven verá, aos poucos, toda sua vida ser colocada em crise com o aparecimen­to de alguém inesperado em seu caminho. A conta-gotas, ficamos sabendo que houve um mau passo no passado, talvez uma decisão duvidosa e alguém aparece para exigir justiça, à sua maneira.

A surpresa vem com o tipo de cobrança estabeleci­do e aí então, apesar de situada no presente, a história evoca o ambiente mágico de antigos mitos. Inútil, para o espectador, exigir coerência lógica, relação de causa e efeito, num campo ficcional que se instala no plano mitológico.

Inegável também o mal-estar que se apodera de quem consente entrar nesse jogo de suspensão temporária da desconfian­ça. Lanthimos nos leva por caminhos angustiant­es de uma relação que ultrapassa a vingança e se estabelece como cruel reparação simbólica. Uma vida por outra vida. E, pior do que tudo, será o culpado o único a escolher quem irá para o sacrifício. Essa a sua pena maior.

Já se fez referência a Ionesco e seu teatro do absurdo para explicar o cinema de Yorgos Lanthimos. Mas, quem conhece a obra do autor de A Cantora Careca, compreende que falta a Lanthimos o sentido de humor da obra de Ionesco. Falta ao grego o que sobrava ao romeno. Lanthimos, pelo menos neste filme, não abandona jamais o tom pesado que decidiu imprimir à obra.

Mas, se nega ao espectador o alívio das explicaçõe­s lógicas, não lhe sonega o facilitári­o das cenas de sangue explícitas que, por paradoxo, enfraquece­m a obra ao invés de tonificá-la. Uma sequência, em particular, parece um tanto desprovida de lógica interna, a bem dizer.

Isso porque a técnica de Lanthimos, a de naturaliza­r o horror, funciona muito bem até este ponto. Como exemplo, a conduta do adolescent­e Martin (Barry Keoghan), fleumático e falando um inglês professora­l, mesmo quando o que exprime seja de fato escabroso.

Essa quebra de tom, no entanto, não estraga o filme. O Sacrifício do Cervo Sagrado é aquele tipo de obra que recompensa quem aprecia a experiênci­a de estar em ambiente diferente, do qual não tem referência­s e no qual tudo pode acontecer. Quem gosta do previsível (e muita gente gosta) deve evitar.

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