O Estado de S. Paulo

Bahia além do dendê

- Ana Paula Boni

Até virar o creme alaranjado feito com pão, leite de coco e azeite de dendê que o acarajé carrega dentro, o vatapá ainda era prato principal no século 19, feito com farinha de mandioca (e não de trigo), com peixe ou galinha, e até fruta pão. Isso nem é assunto corrente na Bahia, mas é prato no restaurant­e Dona Mariquita, de Salvador. Assim como o xinxim (corruptela de oxinxim), um cozido que ali na casa, como no passado, traz entre seus temperos o egussi (nome dado à semente torrada de abóbora ou melancia).

No Dona Mariquita, os pratos são feitos como foram criados, num resgate de receitas tradiciona­is para a preservaçã­o do patrimônio cultural. A casa existe há dez anos, mas foi só em 2016, após muitas viagens e pesquisa, que a chef Leila Carreiro sedimentou sua marca e adotou o aposto Cozinha Patrimonia­l da Bahia.

Num contraste culinário, naquele mesmo ano, o chef Fabrício Lemos abriu o Origem para praticar um único menu-degustação que traz criações de pegada contemporâ­nea (que mudam toda semana) com um olho na tradição popular. Um exemplo é o abarajé, mistura de abará com acarajé recheado de vatapá, que é servido assim que o cliente se senta à mesa, para comer numa só dentada.

Se o primeiro restaurant­e traz à mesa, em porções fartas para dois, preparos como maniçoba (cozido da folha da mandioca), sarapatel (miúdos do porco) e efó (refogado de folha de taioba), o outro faz do tradiciona­l pão-delícia, por exemplo, o suporte para um sanduichin­ho ao estilo bun (pão no vapor) com carne empanada, abacate e vinagrete de maçã-verde.

Apesar de parecer que falam em línguas diferentes, as casas convergem no conteúdo. Ambos os cozinheiro­s vão atrás de ingredient­es que representa­m o patrimônio culinário da terra, dando apoio a produtores. Para além da moda, a motivação é perpetuar o comércio de certos produtos como o maturi (castanha-de-caju verde, que vira uma frigideira no Dona Mariquita), o licuri (espécie de coquinho, que acompanha carré de bode no Origem), o siri mole, a carne de fumeiro (de receita secular do Recôncavo) ou o umbu (que, com produção ameaçada, já faz parte da lista de ingredient­es protegidos do Slow Food).

Assim, tem-se o clássico chupa molho (costela bovina cozida) revisitado por Fabrício e servido com musseline de aipim ou com purê de castanha-de-caju, e a passarinha (baço do boi frito) que Leila prepara do jeito que a iguaria é vendida nos tabuleiros das baianas.

Com seus menus de “comida de feira” e “comida africana”, Leila traz para seu salão bem decorado (inspirado nos terreiros de candomblé) as comidas que o povo come em esquinas quaisquer de Salvador. Autodidata, Leila se tornou autoridade sobre a comida patrimonia­l ao beber em fontes como os estudiosos da alimentaçã­o Manoel Querino, Vivaldo da Costa Lima, Guilherme Radel. Em viagens da Chapada Diamantina ao Recôncavo, passando por terreiros de candomblé, chegou ao que a casa oferece hoje.

Enquanto isso, Fabrício, que morou 13 anos nos Estados Unidos, onde se formou na Cordon Bleu, faz uso de técnicas contemporâ­neas e da experiênci­a em rede de hotéis para visitar os biomas, da caatinga ao mangue.

Cada um a seu modo, ambos os chefs são marcados pela denominaçã­o de origem baiana.

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ANDRÉ FOFANO Origem. Costela bovina cozida, com purê de castanha-de -caju e palmito
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RONALDO PARTRA Dona Mariquita. Maniçoba, um cozido de sete dias das folhas da mandioca

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