O Estado de S. Paulo

Flor no deserto

Chega ao Brasil De Duas, Uma, livro de Daniel Sada.

- Ubiratan Brasil

Se você quiser ler a obra de apenas três escritores sobre o México, aconselha a crítica Rachel Nolan, do New York Times, escolha Juan Rulfo, Roberto Bolaño e Daniel Sada. Rulfo, continua ela, abriu o caminho para o realismo mágico com Pedro Páramo, lançado em 1955, uma década antes do boom que consagrari­a Gabriel García Márquez, entre outros. Bolaño era chileno, mas seu grande assunto era o México. Finalmente, Sada, que surpreendi­a com seu jogo de palavras e um mimetismo que celebrava o vaqueiro da região norte de seu país.

Rulfo e Bolaño já são devidament­e conhecidos e admirados pelo leitor brasileiro – faltava Sada, lacuna agora finalmente preenchida com a publicação do curto romance De Duas, Uma,

pela editora Todavia. Lançada em 1994, a obra conquistou a admiração de nomes consagrado­s como Carlos Fuentes, que revelou sua admiração a todos os cantos, abrindo, com isso, caminho para traduções especialme­nte no mercado europeu e norte-americano.

“Criador de uma retórica baseada no neologismo, regularida­de do ritmo e fervor prosódico, ele sabia como aplicá-lo à sua narrativa. Sada foi um dos precursore­s das histórias do norte do México, a corrente mais importante nos últimos anos, além de ter sido um notável poeta”, reconhece o escritor e crítico mexicano Sergio González Rodríguez. Os verbos no passado se justificam pelo fato de Sada ter morrido em 2011, aos 58 anos.

Era um homem afável, bem humorado e dono de uma retórica deslumbran­te. Ironizava sua origem ao dizer que, quando nasceu, naquele ano de 1953, fazia 52 graus. Foi criado em um povoado desértico do norte do México, onde “havia 1 mil habitantes – mais mortos que vivos”. A geografia foi decisiva em sua criação, pois Sada adotou o deserto de Coahuila como seu território literário, cenário de Lampa Vida (1980), Albedrío

(1989) e desse De Duas, Uma.

Aqui, conta a história das gêmeas Gloria e Constituic­ión Gamal. Idênticas nos gestos, gostos e traços físicos, elas deixam a casa da tia, que as criou depois da violenta morte dos pais, para viver em Ocampo, onde se tornam exímias costureira­s.

Até que o surgimento de um pretendent­e quebra o elo entre elas, fazendo com que Constituic­ión decida descobrir os prazeres do amor. Quando o rompimento parecia inevitável, as irmãs Gamal descobrem uma suave solução. “Essa história de gêmeas astutas e cândidas ao mesmo tempo (...) está construída com uma deliberada economia de meios e é, de algum modo, um caso à parte na obra de Daniel Sada”, escreve, no posfácio, a pesquisado­ra e viúva do autor, Adriana Jimenez. “Quando a escreveu, o autor já era considerad­o um estilista da linguagem, um culterano e barroco do século 20 (...) Daniel manifestou sua intenção de experiment­ar outros caminhos; explicou sua deliberada aposta na contenção de suas tendências caudalosas e estabelece­u as chaves dessa economia de meios.”

“Uma das mudanças em relação a meus livros anteriores consistiu em utilizar frases curtas, diálogos e, sobretudo, me restringir exclusivam­ente à história, sem divagações de nenhum tipo”, justificou o autor em uma entrevista em 1994. A decisão inspirou a trama, cujo assunto é mínimo e o ambiente, sem graça. “Mas a linguagem emprega todo seu vigor e revela caracteres muito mais complexos do que se poderia apreciar à simples vista, ao estabelece­r a distância crítica precisa a respeito do entorno em que as irmãs se movimentam e aplicam seu poder”, continua Adriana Jimenez.

Sada dedicou-se a assimilar silenciosa­mente a herança de um cenário marcado pelo isolamento, como acontece com o deserto, para chegar a uma prosa limpa. “Sua literatura é uma arriscada oportunida­de para dizer as coisas de maneira diferente. Como os escritores Juan Carlos Onetti ou Lezama Lima, Sada foi incapaz de escrever uma frase literal. Trabalhava durante horas, deixando-se levar pelo ritmo interior das frases, estabelece­ndo um contato direto com a linguagem que, em uma ocasião, exigiu que ficasse nu”, comenta o também mexicano Juan Villoro, um dos mais importante­s do cenário mexicano atual. “Enquanto a maioria dos autores renunciava aos caprichos do estilo e se conformava com uma prosa utilitária, Sada exibia uma linguagem feroz, uma selva de significad­os na qual nasciam suas invenções transborda­ntes. Foi o melhor artífice da minha geração.”

Villoro acompanhou os últimos anos de Sada. Segundo ele, sua complexida­de podia ser extremamen­te divertida. “Por outro lado, seus textos mais simples, como De Duas, Uma, transmitem uma eloquência misteriosa. Seu romance Quase Nunca, vencedor do Prêmio Herralde, marca um equilíbrio perfeito entre o artista barroco e o esplêndido contador de histórias que era Daniel Sada. Quando estava feliz, comentava: ‘Eu me sinto como um periquito em um tapete’. A metáfora é perfeita: a alegria é um conforto estranho. Então, ele sorria como um Buda benevolent­e, convencido de que as palavras melhoram o mundo. Na areia, Sada criou uma miragem resistente. Foi fecundo onde nada havia. Ele encontrou um deserto e deixou uma floresta.”

“É importante a chegada ao Brasil da literatura de Daniel Sada”, reconhece o autor e tradutor Joca Reiners Terron, um dos grandes conhecedor­es de literatura latino-americana. “Ele figura entre os chamados ‘narradores do deserto’, cuja ficção se desenvolve no norte do México, povoado por índios, fronteiras, gringos perdidos e uma linguagem rochosa e bela de tão áspera.”

Sada também admirava e conhecia bem a literatura brasileira, graças à amizade com Juan Rulfo. Em entrevista a Rodolfo Mata, publicada no Portal de Revistas da USP, Sada conta como o amigo desdenhava de Jorge Amado, mas se deslumbrav­a com a prosa de Guimarães Rosa. “Rulfo dizia que Rosa havia transforma­do o idioma – para ele, Grande Sertão: Veredas era o melhor romance do século 20”, afirma Sada que, de Clarice Lispector, preferia os contos aos romances.

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PASCUAL BORZELLI IGLESIAS O autor. Criador de uma retórica com neologismo
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DE DUAS, UMA Autor: Daniel Sada Tradução: Livia Deorsola Editora: Todavia (104 págs., R$ 39,90 impresso, R$ 27,90 digital)

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