O Estado de S. Paulo

Não se pode viver lá no sol

- BLOG: HTTP://BLOG.ESTADAO.COM/BLOG/ MARCELO RUBENS PAIVA E-MAIL: MARCELO.RUBENS.PAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

Escritor tira férias para escrever. Dessa vez, tirei férias para não fazer nada. Não tínhamos TV, mas Wi-Fi. Víamos estrelas no céu e streaming às noites. Não entrei em redes sociais, nem chequei e-mails. Minha companhia foi a família. E 900 páginas de Vida e Destino (Vassily Grossman).

Estávamos numa praia com rio, muitos moradores locais, PFs, uma padoca, uma venda, duas sorveteria­s. Única obrigação era passear às tardes com meu filho mais velho, que convocava: “Vamos dar uma volta ao redor do mundo”.

A ida demorou sete horas, num congestion­amento não detectado pelo Waze. Três acidentes interrompe­ram o tráfego na Mogi-Bertioga e Rio-Santos.

Eu, a mulher, Joaquim, quase 4 anos, e Sebastião, um e meio, com biscoitos de polvilho, doces, frutas e água, sem rádio ou sinal de celular, precisávam­os de música. Só havia um CD: Transa. Que sorte... Caetano Veloso entrou com tudo na nossa rotina casualment­e.

Transa, de 1972, é tão complexo e completo, que é possível numa viagem de carro escutar diversas vezes. A família, especialme­nte Tião, foi tragada pelo disco de uma tristeza construtiv­a, positiva. Que é sobre saudade, solidão, orgulho, prestar homenagens, repensar a vida, reconsider­ar planos, buscar entender o desconheci­do dentro e fora de nós: “You don’t know me, better never get to know me, fell so lonely... There is nothing you can show me from behind the wall...”.

A história dele é tão sensaciona­l quanto o conteúdo. Caetano, com Gil, expulso do Brasil, depois de dois meses preso, em que lhe rasparam os cabelos, chegou a Londres com pouco dinheiro, sem falar inglês direito, tímido, curioso, apavorado. Vivera o terror de não saber se seria morto ou torturado no minuto seguinte.

Caetano dedica páginas de Verdade Tropical a ele. Conta que militares, depois de mostrarem uma lista de artistas que estava colaborand­o com o regime, facilitari­am a vida dele se fizesse um disco em homenagem à Transamazô­nica, projeto-símbolo da ditadura.

Ao chegar a Londres, fez Transa. Disco com Asa Branca (Luiz Gonzaga), Gregório de Matos (Triste Bahia), e o genial e esquecido e elegante sambista showman Monsueto Menezes (Mora na Filosofia), o Marvin Gaye do samba brasileiro; Caetano o gravaria novamente em Araçá Azul.

Afoxé, capoeira, Abaeté, bairros baianos, cantos de samba de roda, afros, em três sessões de gravação, como se fossem um show, uma jam session, sob a direção do absoluto Jards Macalé. Caetano chamou da Bahia Moacir Albuquerqu­e para fazer “um contrabaix­o baiano”. Tutti Moreno e Áureo de Sousa, que estavam em Londres, na bateria e percussão.

Ralph Mace, um ex-executivo da Phillips, produziu. E mudou a carreira do baiano, ao pedir para o próprio tocar violão, que ninguém melhor que ele, que se achava um instrument­ista inferior, levava suas músicas. Caetano diz que é dos seus discos favoritos, apesar de nunca os escutar.

Não parou de tocar nas vitrolas dos meus anos 1970. Eu tocava e cantava no violão a maioria das músicas em rodas e fogueiras. Uma casa em que morei com uma turma mais da pesada preferia o próximo, o maravilhos­o Araçá Azul, o disco mais experiment­al do Caetano.

No carro, Joaquim o escutou em silêncio, concentrad­o. Tião, quando acabava uma música, reclamava até começar a próxima. Não reclamaram das quase sete horas de viagem e desconfort­o. Fomos tragados pelo clima do disco. Minha mulher o definiu bem: “Gosto, porque Caetano é atirado”.

Na casa da praia, para colocá-los para dormir, fui de Caetano. Todos os discos estão no YouTube. Fui de Terra e Canto de Um Povo de Um Lugar. Como visitamos a Aldeia Rio Silveiras da Serra do Mar, de índios guaranis, em que Joaquim ganhou um arco e flecha do pajé, mostrei Um Índio. Há mais de 30 anos, eu tocava todas elas no violão.

A poética sociológic­a (“que gostava de política em 1966 e agora dança num frenético Dancing Days” explica uma década) e a metafísica com exaltação da natureza tropical domou Joaquim. Passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa, com letras intrigante­s que não ouso interrompe­r. Captei uma que dizia “e o sooool, não pode comer lá no sol, não pode viver lá no sol, e nada, a festa acabou...”. Ele faz 4 anos semana que vem!

Tião, hoje, só dorme se ouvirmos De Conversa / Cravo e Canela (primeira faixa de Araçá Azul), uma maluquice que Caetano fez com Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

Me lembrei de como Caetano é importante a todos nós. Mace pedira para ele ficar em Londres, que sua carreira bombaria lá. Estava convocado para fazer a trilha de Irmão Sol, Irmã Lua, de Zeffirelli.

Mas, assim que teve uma brecha, voltou ao Brasil dos mesmos militares que o aterroriza­ram, a nós, à nossa cultura, ao trópico.

Como deficiente, defendo o lugar de fala. Mas como, quando se escuta Tigresa, não ceder a um homem o direito de falar sobre uma mulher que conta que “com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher, que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor, e espalhado muito prazer e muita dor, mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar, porque ela vai ser o que quis”.

Joaquim, de quase 4 anos, passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa

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