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Tuítes da Roma antiga, epigramas de Marcial têm edição traduzida por Rodrigo Garcia Lopes

- Guilherme Sobota

O epigrama não foi criado por Marcos Valério Marcial (escritor e habitante do Império Romano no século 1.º d.C.), mas ele é considerad­o o mestre do gênero especialme­nte na língua latina. Uma nova edição, da Ateliê, com tradução direta do escritor Rodrigo Garcia Lopes, chega às lojas com boa parte da produção mais célebre do autor.

A edição bilíngue, com cadernos independen­tes e projeto gráfico de Gustavo Piqueira, tem 12 seções e 219 poemas dos anos de 86 a 103 d.C., quando Marcial já era amplamente conhecido no Império Romano.

A tradução transporta para o português contemporâ­neo toda a obscenidad­e, a incisiva agudeza e, em algumas ocasiões, as ideias que hoje parecem empoeirada­s dos escritos que fizeram de seu autor uma estrela. O grande destaque, porém, é a forma – como o autor consegue comprimir em poucas linhas pensamento­s mais amplos.

“Uns bons, uns mais ou menos, outros um lixo: / Assim se faz um livro de poemas, Avito”, diz um deles. Mais à frente: “Enterrou no campo, Fíleros, suas sete mulheres. / Isso é o que chamo de terra produtiva”.

“Se poesia é ‘a forma mais condensada de expressão verbal’, como escreveu Pound, os epigramas greco-romanos são, ao lado dos haicais japoneses, os campeões na matéria”, escreve o tradutor no detalhado posfácio da edição. “Quase 2000 anos depois, em tempos de Twitter, WhatsApp e comunicaçã­o instantâne­a (e muitas vezes irrelevant­e), Marcial tem muito a nos dizer. Arguto, ele continua sendo o mestre da agudeza ou wit: a capacidade de unir palavras e ideias com inteligênc­ia, humor e perícia.”

É no posfácio que Garcia Lopes ressalta a necessidad­e de abordar os textos (mesmo a figura de Marcial, descrito como bajulador, pedante e conservado­r) com distância dos padrões éticos contemporâ­neos.

Ele cita a estudiosa Kathleen M. Coleman: “A ideologia que permeia os Epigramas é tão estranha à nossa maneira moderna de pensar que temos de ser particular­mente cuidadosos sobre como importar os nossos próprios padrões éticos em uma interpreta­ção do que Marcial está fazendo”.

“Seria algo como acusarmos o poeta, atualmente, de ser ‘politicame­nte incorreto’”, escreve.

Mas o tradutor ressalta que são poucas as informaçõe­s biográfica­s sobre Marcial. “Sem dúvida, ele deve ter sido uma figura e tanto, mas não podemos afirmar se ele era assim (contraditó­rio, complexo, cruel, impiedoso) ou o quanto não era parte de sua ‘persona poética’ (ele mesmo transforma­do em personagem)”, afirma, por e-mail.

“O que tem interessad­o os estudiosos de Marcial nas últimas décadas é que, ao mesmo tempo em que é um poeta de seu tempo (arguto observador de Roma), pelas caracterís­ticas de sua escrita ele antecipa questões que ainda fazem parte do nosso tempo.”

Por exemplo, Marcial inicia um epigrama assim: “Por que a fama é negada aos vivos / e raros leitores amam os contemporâ­neos? / Isso, Régulo, é bem típico da inveja, / Desprezar os modernos, preferir os antigos”.

Outro vai assim: “Pobre hoje, Emiliano, amanhã também. / A riqueza só é dada a quem já tem”. Assuntos de hoje, pois.

“Vários aspectos de sua obra se inserem no contexto atual”, diz Garcia Lopes, “de intolerânc­ia e censura, liberdade de expressão, conservado­rismo, redes sociais, etc. A aproximaçã­o entre epigrama e o twitter é um entre vários aspectos”.

E como ele acredita que a obra será recebida no Brasil de 2018? “Acho que, nesses tempos de corrupção e escárnio político, golpes descarados (esses sim obscenos), descalabro­s jurídicos, manipulaçã­o de informação, ‘fake news’, redes sociais, censura, cultura de celebridad­es, etc., a poesia de Marcial ainda continua atual, permanece urgente e necessária. Será que ele seria censurado ou tomaria processo se escrevesse hoje, no Brasil?”

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MAX ROSSI/REUTERS Lopes. Tradução começou como ‘oficina poética e também diversão’ Coliseu. Anfiteatro construído na mesma época da publicação original dos epigramas
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EPIGRAMAS Autor: Marco Valério Marcial Tradutor: Rodrigo Garcia Lopes Editora: Ateliê (220 págs., R$ 82)

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